1.2.07

Fernando Assis Pacheco, uma publicação póstuma



Joaquim Manuel Magalhães

Actual, Expresso, 3 de Julho de 2004




Não consigo chamar Respiração Assistida a este volume de poesias (Assírio & Alvim, Lisboa, 2003) porque não foi o autor que lhe chamou assim. Isso foi o título que deu a um poema, que nem sequer saberemos nunca se viria a incluir juntamente com estes poemas ou teria organizado de outra maneira. Trata-se de uma hipótese de título somente. Eu é que sou sempre muito desconfiado de professores que metem decisões suas em seara alheia. No que talvez nem tenha razão. O próprio Assis Pacheco autoriza na sua prática este processo logo no seu primeiro livro, cujo título, Cuidar dos Vivos, é pedido ao título de um poema que o integra. Mas uma coisa é um autor tomar uma decisão dessas, outra coisa é alguém fazê-lo por ele postumamente. Não suponho que seja boa política editorial, parece uma maneira oitocentista. Algo de mais descritivo operaria melhor, suponho. De qualquer forma, o livro já deve ficar para sempre com este título e a mim ninguém tirará a vontade de não lhe chamar assim. Será sempre um conjunto de poemas sem ordem verdadeiramente fixada, o autor não saberemos como o viria a fazer; sem título, o autor nunca lho atribuiu. É um dos casos de interferências exteriores de que a literatura está cheia. Arranjei um estratagema para o ler: fotocopiei-o, meti-o numa capa e ele vai tomando os caminhos informes que eram maioritariamente os seus. Foi um belo conjunto de poemas que o Fernando escreveu, sem ser um livro que o Fernando dispôs, com a meticulosidade com que sempre planeava a sua obra, sempre a fingir que não lhe ligava nenhuma, que não tinha importância de maior, grande mentira de pessoa que gostava mais de falar dos e com os outros do que se pusessem a falar-lhe de si. Mas, dentro dele, a importância do que fazia com bastante fulgor se lhe assegurava.

É bom sabermos a sua insistência em chamar “mestre” a Nicanor Parra. Não que essa designação o colocasse a si mesmo como discípulo do poeta chileno. Mas por mostrar obviamente os caminhos sem fato de luzes que fazia que a sua poesia tomasse. Como referência para os leitores da obra de Assis Pacheco, Parra inclui-se com ele no número dos poetas, bem raros para os quais a importância da poesia não depende do seu empolamento, mas numa distância do estentório por parte do autor, que não quer tornar-se um tribuno de si mesmo, por muito que saiba quanto é ele que está envolvido naquelas palavras que, depois, para ver o que acontece, parece dependurar como um trapo à distância como se de coisa mal cheirosa se tratasse. Sempre como se o valor da poesia estivesse noutro lugar que no da poesia ela mesma; ou como se a presença do seu autor só ganhasse autenticidade se este se distanciasse para silêncios supostamente indiferentes. Paremos para ouvir também Assis Pacheco enquanto ouvimos Parra:



TUDO



É POESIA

menos a poesia



ou este outro esclarecedor poema:



A

POESIA

MORRERÁ

SE NÃO

A OFENDERMOS





temos

que

possuí-la

e humilhá-la em público

depois se verá

o que se faz





Mesmo neste livro atravessado de mais nostalgia ainda do que todos os seus livros (onde o que ganha sentido desta palavra assume liderança de escrita múltiplas vezes), um poema como “Bah!” é significativo deste excurso comparativo.

De todos os modos, porém, neste volume, onde a mágoa final se desenha (e ter conseguido falar dela com tão elaborada simplicidade linguística é um feito de coragem psíquica digno de ser retido), ela é usada ainda como um dos temas de quotidiano, de coloquialidade, de diálogo íntimo consigo mesmo que se tornou marca distintiva dos fortíssimos versos que sempre escreveu. Embora talvez seja conveniente recordar que neste livro ocorrem alguns poemas anteriores a um susto mais imediato da morte – os que precedem 93 – em que esta, ou similar significação, já ganha um fundo tematizador, como acontece com o poema “, R, 1992”.

Esta inicial indica um dos nomes centrais a que o livro a fazer pretendia enviar: Rosário, a sua mulher; e nela, sempre envolvidos, os seis filhos de ambos. É poderosa a presença da família (e de alguns amigos que o poeta deixa tomar quase parte dela). É neste campo de familiaridade, de uso coloquial dentro da família, que naturalmente ocorrem vocábulos que podem parecer a alguns como palavrão e que mais não eram senão o modo naturalíssimo e sem qualquer malícia como naquela casa, por exemplo, se tratava um homem no feminino, uma criança por uma alcunha disparatada e terna, um cão como gente dada a apetites. Era o amor aquilo que se sentia circular, o grito seguido de perdão, a ternura dada numa passagem rápida mas marcante; essa casa cheia de gente amena até em qualquer sofrimento, de confusos aparecimentos e desaparecimentos de crianças, umas mais caladas, outras mais ternas, outras mais inquiridoras. No centro, a inquieta alegria dos pais, por momentos a nostalgia que pelo Fernando passava e depois a música do jazz, dos ritmos tropicais, um envolvimento humano da figura de um poeta que era um caos felicíssimo de presenciar. Neste domínio comum se deve ler o primeiro dos nove sonetos: ainda que “Aretino” venha mencionado nesse soneto, creio que vem como eco literário que dava jeito numa rima, pois as palavras usadas para referir a sexualidade que corre entre marido e mulher Tem todo o carácter da comum linguagem do amor entre seres para quem elas não tinham outro peso senão o do habitual. Nem sequer são palavras mal soantes ou grosseiras, são o que pode entre muita gente florir na voz do amor. Nada de inusitado ou até de libertino encontro nesse soneto, um dos grandes poemas do amor comum heterossexual e marital que a poesia do sec. XX nos deu. Mesma na “vascular emergência transportado // com terror de sirenes por dois homens”, esse selo de morte em que medita, “não pensa noutra coisa: o seu enterro”, o homem escreve no meio da presença amada com a doçura e a rudeza do prazer numa sequência em que se sabe unido à sua mulher, “camaradas leais do bem foder”.

Creio que a leitura que melhor compreendeu a peculiar qualidade da poesia de Fernando Assis Pacheco a fez José Carlos de Vasconcelos num texto introdutório a Retratos Falados de F.A.P., ASA, Porto, 2001: “Assis: A Arte do Jornalismo”. De facto, se informar, interpretar e opinar são características desse género que o jornalismo é, esta tripla situação não pode, para que o jornalista seja completo. fechar-se no informativo de uma notícia – hoje em dia mais especificamente tarefa da rapidez das televisões – deve inscrever-se numa consciência do seu jornal e manifestar o propósito, que nunca deveria ser manipulador, de tentar a inteligência e a decisão dos leitores. A tudo isto deve juntar-se uma característica de estilo clara, concisa, de registo coloquial na selecção do léxico, o qual nunca deverá cair em qualquer incorrecção, não apenas sintáctica, mas também, pois a sintaxe envolve profundamente o sentido, ética. Parece que estou a falar da poesia do Fernando. E estou. E foi isso que Vasconcelos compreendeu ao dizer: “ A sua poesia tem um ritmo, um tom narrativo e/ou coloquial, uma sábia utilização de adjectivos e advérbios, uma luminosa e dificílima simplicidade, comuns à escrita da (sua) “profissão dominante” (o jornalismo), como lhe chamou numa plaquete de 1982. Parece-me isto visível desde sempre. Isto é, e paradoxalmente, desde antes ainda de o Assis militar nessa “profissão dominante”. O que significa ter sido, primeiro, a sua escrita poética a influenciar a jornalística e, depois, a escrita jornalística a influenciar a poética”.

A influência a partir do poético deve-se, para lá do génio pessoal, à sua predilecção por ( e conhecimento de) a geração inglesa de Auden, Spender ou Isherwood, todos seguidores de actividades de repórter ao mesmo tempo que de escritor e todos profundamente ligados à intenção de uma escrita modernista tal como a defendeu Pound entre o movimento imagista e vorticista. A influência a partir do jornalismo sente-se na rapidez com que define situações, na atenção fixada ao pormenor humano, ao distanciamento com que descreve – mesmo que imerso no pior pesadelo – a situação que antevê como proximamente sua, nesse outro enorme poema seu que é “Respiração Assistida”. Um dos momentos cimeiros dessa situação é constituído pela série Desversos, continuada neste volume com quatro poemas mais.

Sempre encontrei no Fernando um inesquecível homem de saber. Também neste esboço final de livro o vamos encontrar, dentro do diálogo com a morte e com a família que tão intensamente era a sua limalha de ferro e de amor, dialogando com os processos de poetas amados, como Jaime Gil de Biedma. “Último Tesão” e “Um Tal Fernando Assis Pacheco” não desistem de enfrentar “Contra Jaime Gil de Biedma” e “Después de la Muerte de Jaime Gil de Biedma”. Ainda que no Fernando, ao contrário do espanhol, o pathos não fosse um artifício, mas o desafio mais radical com que podemos confrontar-nos na solidão de nós próprios.
Um Tal Fernando Assis Pacheco
Jornal Público, Sábado, 21 de Fevereiro de 2004

Fernando Pinto do Amaral

Título - Respiração Assistida
Autor - Fernando Assis Pacheco
Posfácio - Manuel Gusmão
Editora - Assírio & Alvim
88 págs., ¤ 12,00


Uma das mais persistentes confusões quando se fala de poesia tem nascido do equívoco com que por vezes alguns leitores identificam uma suposta "linguagem poética", superiorizando-a perante o que seria a linguagem comum - como se a poesia pudesse sempre definir-se através de uma sobrecarga retórica e metafórica em relação à restante linguagem, cavando assim uma distância que inapelavelmente as separasse.

Vem isto a propósito de Fernando Assis Pacheco (1937-1995), autor revelado em 1963 com "Cuidar dos Vivos", livro que nesse momento histórico se enquadrava numa poesia de intervenção política, comprometida num testemunho de luta contra a guerra colonial. Publicando ao longo do tempo colectâneas de circulação muito restrita - quase clandestinamente divulgadas entre amigos, em edições de autor -, o poeta veio a reunir a sua obra apenas em 1991 ("A Musa Irregular", Ed. Hiena), num volume que manifestava o desejo de fugir a qualquer dicção grandiloquente - "Peçam a grandiloquência a outros" (p.166) -, oferecendo-nos, em vez disso, uma linguagem coloquial muitas vezes irónica, mordaz, satírica, mas ao mesmo tempo comovida com o pequeno espectáculo do mundo e descrente das virtualidades da própria poesia: "e depois isto dos versos / passados anos já não passam de enganos" (id., p.194).

É dentro deste registo desvalorizador do papel tradicionalmente atribuído ao género literário "poesia" que podemos ler agora um notável conjunto de 35 poemas inéditos ou dispersos à data da morte do autor - textos escritos num tom muito pessoal, que propositadamente disfarça a pulsão lírica graças a formas muito eficazes de camuflagem irónica, sabotando e subvertendo os "clichés" associados ao lirismo. Como sintetiza Manuel Gusmão num lúcido posfácio, trata-se de "uma poética da deflação do 'pathos' lírico. A expressão julgo que permite, por um lado, não apagar a sua inequívoca dimensão lírica e, por outro lado, dar conta dos processos de 'decapagem' a que ela é submetida, assim como das modulações irónica, satírica ou de 'escárnio e mal-dizer' igualmente manifestas" (p.66).

Para alguns leitores mais apressados, talvez o que sobressaia seja precisamente esta componente escarninha, satírica ou abertamente "fescenina" (a palavra é de Manuel Gusmão), patente quer nos "Desversos" que jogam por vezes num terreno político, quer em alguns textos mais desbragados, que retomam a alegre celebração do prazer sexual - veja-se um soneto dedicado aos testículos: "Pus-vos a mão um dia sem saber / que tão robusta e certa artilharia / iria pelos anos fora ser / sinal também de lêveda alegria // amigos meus colhões quanto prazer / veio até mim em vossa companhia / a hora em que tiver já de morrer / morra feliz por tanta cortesia" (p.19).

Uma das maiores qualidades da escrita de Fernando Assis Pacheco provém, no entanto, do modo muito subtil de articular uma apurada crítica social e, ao mesmo tempo, uma análise distanciada do "eu" ou daquilo em que o "eu" se tornou - pouco a pouco transformado num "tu" a quem o poema se dirige sem contemplações: "Alombo contigo há uma porção de anos / e vou-te dizer és um chato / não tens ponta de paciência / para a vida nem para ti próprio // [...] // vez por outra um livrinho / de versos vez por outra nada / qualquer um do teu tempo / está bastante melhor do que tu / deputado administrador de empresa / ministro da maioria / puta (alguns chegaram a isso)" (p.43).

Estes efeitos de auto-ironia tornam-se particularmente evidentes quando o poeta se afasta ainda mais de si mesmo e se observa na terceira pessoa, falando sobre "um tal Fernando Assis Pacheco" como se se tratasse de um duplo ou de uma personagem vagamente familiar: "Vivo com ele há anos suficientes / para poder dizer que o reconheceria / num dia de Novembro no meio da bruma / é como uma pessoa de família // [...] / não invento nada vi-o crescer comigo // chorava então desabaladamente / e eu com ele sentindo-nos perdidos / o cobertor puxado sobre a cabeça / seria trágico se não fosse ridículo // [...] / não lhe perguntem se foi feliz" (p.45).

O amargo pedido deste último verso denota já uma inflexão de perspectiva, no sentido de um balanço existencial de tons elegíacos, recuperando um pouco de tudo o que foi importante numa vida humana, na vida desse "tal Fernando Assis Pacheco". É graças a esse movimento de regresso que vemos desfilar os pais, as filhas, a família ou os amigos - por vezes explicitamente nomeados -, compondo um mosaico de imagens e episódios de um passado acontecido algures entre Coimbra e Lisboa, entre a Galiza e a ria de Aveiro: um passado legível como memória já longínqua ("ao tempo que isto foi", p.41), mas apto a iluminar o presente com a sua luz talvez um pouco baça. A esse respeito, chamo a atenção para uma belíssima "Elegia" dedicada aos desaparecidos tempos de Coimbra: "com 40 mil habitantes no melhor dos casos / a cidade tinha um ar modesto e a puxar para o triste / sempre os mesmos cães magros sempre a mesma gente lenta / o mesmo nevoeiro subindo em espiral do rio // nesse tempo ainda os meus pais eram da família / que depois perdi em anos consecutivos / e eu julgava-os imortais como deuses de luz clara / brilhando à mesa sobre a grande toalha de linho // nem tão-pouco pretendo aborrecer agora os meus filhos / com histórias dessa que enterrada está Coimbra / nós vamos no oco da onda ébrios de sal mordente / o que vem dar à praia é espuma fria e olvido" (p.24).

Para lá deste lirismo nostálgico, aliás já cultivado em muita da anterior obra de Assis Pacheco, o que se torna novo nesta fase - sobretudo agora, com os poemas reunidos num livro - consiste numa penetrante e obsessiva presença da morte, embora uma morte cujo peso trágico acabe por surgir quase sempre subvertido por uma retórica deceptiva e por um fino sentido de humor. Mas com humor ou sem ele, a morte existe e infiltra-se nesta poesia, que mostra conhecê-la ou antecipá-la, declinando-a quer como futura ausência do sujeito - veja-se o poema em que faz o inventário da sua herança (pp. 27 / 28) -, quer através dos seus sinais concretos e terrivelmente sensíveis ao nível do corpo, no momento em que uma ou mais doenças ameaçam e avançam sobre alguém numa cama de hospital, "entre os frascos do soro" (p.51) e a solidão última de um homem que, tal como Ruy Belo, sabia estar a despedir-se da terra da alegria:

"Triste de mim mais triste que a tristeza / triste como a mão que segura o copo / como a luz do farol esgaçando a névoa / triste como o cão manco / deixado na serra pelos caçadores // [...] // a tarde triste os anos tristes / a grande costura da tristeza / do esterno ao baixo ventre // triste e já sem nenhum reparo / a fazer à metafísica / senão que é um défice / porventura / do córtex cerebral" (pp. 21 / 22).