4.4.07

A poesia é um paraíso
apagado por um trovão




Este nacionalista em matéria vinícola ("nacionalis­ta do Douro", sublinha) é bem conhecido do grande público. Escritor e jornalista, hoje também director da Casa Fernando Pessoa, nasceu em Vila Nova de Foz Côa em 1962 e viveu na aldeia do Pocinho ("o centro do mundo") até ir para Lisboa, onde se licenciou em Estudos Portugueses. De­pois, foi professor de Linguística. Depois, foi (é) jornalista, poeta, romancista, portista, bloguista, etc. e tal. No seu livro de poemas «As Imagens» (1987), lê-se: "escrevo para não morrer roxo de frio dentro / do coração, de frente para a luz do ouro, barulho / de passos na interminável agonia da luz". Vinte anos depois, não sabe bem para que serve a poesia, mas gosta dela. De poesia e de gastrono­mia, de viagens e de romances. Francisco José Viegas, que em tempos viveu entre Portugal e o Bra­sil, está hoje mais longe de Manaus e mais perto de nós. No passado dia 10, encontrámo-lo num palco da Casa das Artes de Famalicão («Noites de Escritura Pública»). Pedimos-lhe que falasse con­nosco. Falou e ousou. Pedimos-lhe uma sugestão de leitura. Deixou-nos «A Grande Arte», de Rubem Fonseca ("É o romance mais perfeito dos últimos 20 anos"). Mas foi com uma passagem de um li­vro seu, «Longe de Manaus», que quis começar a sessão. Com esta frase: "Talvez as pessoas quei­ram, Isaltino, um pouco de ordem na vida".

Prefere perguntar ou responder?
Depende... Mas hoje vou aproveitar! [Risos] Acho que pergun­tar é uma actividade difícil. Quando estou a fazer entrevistas, po­nho-me sempre no papel de quem está em casa, tal como quando faço um programa de rádio, penso em quem está a ouvir. Imagi­no alguém que vai ao volante do carro, de noite. O que é que eu gostava de ouvir? Está a ser interessante a conversa? O tom é agra­dável? Ajuda-me a conduzir? Ajuda-me a passar o tempo? Eu de­testo as entrevistas tipo combate de boxe, aquelas em que o entrevistador tem que fazer valer o seu ponto, como se o entrevistador tivesse uni ponto de vista necessariamente para contrapor ao do entrevistado. Quando as pessoas vêem um programa, querem é saber o que o entrevistado quer dizer! Devemos procurar valori­zar o entrevistado. É evidente que todos nós temos truques e se, ao fim de dez minutos, antipatizarmos com ele, sabemos armadilhar a conversa toda, e sabemos mostrar o pior... Temos que ser honestos. Se convidamos uma pessoa, então é porque ela tem alguma coisa a dizer. Essa entrevista vive do confronto, mas não necessariamente da valorização do entrevistador. Ë como se o jor­nalista fosse a estrela. A estrela é o convidado.

Costuma estar do lado de cá, do lado do entrevistador. Hoje, está desse lado... O que é que mais lhe interessa saber sobre as pessoas?
Se estiver a entrevistar a Meg Ryan, quero saber se ela quer jantar comigo! [Risos] Se estou a entrevistar um autor, quero sa­ber qual é o processo de criação, o que é que ele realmente quis com aquele livro, se está contente com o livro, e obviamente que procuro desvendar alguns segredos para os leitores. Mas sem me tornar demasiado cúmplice. Lembro-me de ter feito entrevistas perfeitamente desonestas a pessoas que eu adorava que tinham escrito livros magníficos. Eu estava realmente do lado do autor. Às vezes acontece: o entusiasmo toma conta de nós. Interessam-me muitas coisas nas pessoas: a maneira como vivem, a maneira como trabalham, a maneira como escrevem, no caso. Interessa-me saber o que é que elas têm a dizer. Porque toda a gente tem qualquer coisa a dizer. Pode não ser novo, mas alguma coisa é, seguramente.


DO POCINHO AO BRASIL

É verdade que viveu na última paragem ferroviária do Douro?
Agora é a última paragem: o Pocinho. O Pocinho ainda é hoje, para mim, o centro do mundo. Era onde viviam os meus avós, a minha família, e à medida que foram morrendo voltou a ser o centro do mundo - uma espécie de raiz. O Pocinho é um bocadi­nho a metáfora daquela parte do interior de Portugal que foi sen­do abandonada, abandono contra o qual não se pode fazer grande coisa. As pessoas vão saindo, vão procurando melhores condi­ções de vida noutros lados, mas lembro-me de o Pocinho ser uma espécie de oásis no meio daquilo. É preciso dizer que o Pocinho não é uma aldeia qualquer. O Pocinho é a aldeia que produz o Barca Velha! [Risos do público] É a aldeia que produz o Esteva, o Vale Meão, o Meandro - são os melhores vinhos do Douro, que estão aqui. Eu não venho de um lugar qualquer! [Risos] Aos 15 anos, quando descobri que o meu avô, aos fins-de-semana, ia tra­balhar na Quinta do Vale Meão, deixei de dizer que o meu avô trabalhava na Quinta do Vale Meão. Dizia: o meu avô trabalha na Quinta onde fazem o Barca Velha! Houve logo um upgrade. Ain­da por cima, o melhor Barca Velha que eu conheço é o do meu ano! Em matéria vinícola, sou nacionalista. Nacionalista do Dou­ro! Já não acho graça aos vinhos que passam do Sado para o Sul.


O Douro é, portanto, central.
Sim. Não sei se conhecem o Pocinho... É que um lado da al­deia pertence ao distrito de Bragança e o outro pertence ao distri­to da Guarda. E as pessoas perguntam: mas tu és do distrito da Guarda ou do distrito de Bragança? Eu sou do Douro, que passa ao meio. És da Beira ou de Trás-os-Montes? Sou da Região De­marcada do Douro. Este seria o melhor processo de fazer a Regionalização em Portugal: Região Demarcada do Dão, do Douro, dos Vinhos Verdes, etc. Era ali que começava a linha de Sabor, que era uma linha lindíssima que tinha dois tipos de composição: o comboio normal e a auto-motora. Quando chegava a determi­nada estação, o Sr. Rodrigues, que era um dos condutores da auto­motora, parava para comer cerejas. Passava-se o mesmo na cidade onde eu vivi, Chaves. Quando chegava a Carrazede, nós saía­mos e íamos a pé cerca de um km e voltávamos a apanhar o com­boio mais à frente. A minha vida esteve sempre ligada aos com­boios – um dos livros que escrevi era, aliás, sobre comboios. O meu avô era ferroviário (era operário metalúrgico da CP) e nunca disse coisas como "o comboio para o Porto". O meu avô dizia: "o 6013" ("Apanhas o 6013, que chega às 18h45, na linha 42")- Che­guei a fazer colecção de horários de comboios. Às vezes, aos 16 ou 17 anos, pegava num horário e começava a viajar... Tenho um gran­de fascínio por comboios, porque se encostarmos um dedo a um carril na Estação de Campanhã, caso não saibam, do outro lado está Vladivostok.

Estamos ligados.
Sim. Para mim era espantoso pensar que estávamos ligados.

Foi isso que influenciou também o viajante? É daí que lhe vem a ânsia de viajar?
Sim: os comboios que partiam, os comboios que chegavam... Foi assim que comecei por viajar, e tenho um recorde de 22 noi­tes seguidas passadas num comboio. Fiz seis anos seguidos de InterRail – um vício. Atravessei a Europa a dormir nos comboios.

Do comboio para o avião... Julgo tê-lo ouvido dizer um dia que vivia meio ano em Portugal e meio ano no Brasil.
Vivi assim cerca de dois anos e meio: três meses de Brasil e três semanas de Portugal. Foram os anos que levaram à escrita de «Longe de Manaus» – por isso é que ele é escrito metade em português de Portugal e metade em português do Brasil, e também é produto de uma relação apaixonada pelo Brasil. As pessoas dizi­am coisas absurdas. Como vivia no Brasil, achavam que era por­que trabalhava no Consulado, ou na Embaixada. Não. Mas então o que é que estás lá a fazer?, perguntavam. Estou a trabalhar, por mim. Tem muito a ver com a pequenez do funcionalismo cultu­ral português pensar que não se pode arriscar. Eu arrisquei. Quis escrever, mantive o meu trabalho conforme pude, e foram dois anos óptimos.

O que é que nasceu primeiro: a paixão pelas letras do Brasil, pela cultura do lugar, ou pelo país, pelo lugar geográfico?
Eu já conhecia o Brasil, já tinha feito uma série de televisão sobre o Brasil. Quando fui para lá viver, já só me faltava conhecer um Estado brasileiro. Foi uma experiência fantástica. O Brasil é um país irritante. Tem todos os defeitos, mas tem todas as quali­dades – que nos envergonham de pensar mal do Brasil. E eu não acredito em paraísos, ou em vidas fáceis...

Também é um apaixonado pela literatura brasileira.
Muito. Aliás, costumo dizer que a literatura brasileira é infini­tamente superior à portuguesa. A frase não é minha, é do poeta angolano Mário António, que foi meu professor de Literatura Brasileira. Há um diálogo interrompido entre a literatura portu­guesa e a brasileira, por um lado pela arrogância de muitos escri­tores portugueses, e por outro lado pela arrogância do sentimen­to político brasileiro em relação a Portugal. O facto é que o ro­mance brasileiro tem hoje uma criatividade, uma intensidade de tal forma, que se me perguntassem quais são os autores de língua portuguesa que eu mais gosto de ler, em dez, haveria sete brasileiros. Sem qualquer preconceito anti-português. Tem uma vantagem sobre grande parte da ficção portuguesa: é que não é pirosa.

A ficção portuguesa é pirosa?
Grande parte é. É muito fácil, muito dada a sentimentos, a estados de alma. É pouco dada a trabalho de investigação sério, que tem que haver na ficção, apesar de tudo. Há um filão da literatura brasileira – que é o que vai de Machado de Assis até Ru­bem Fonseca, onde há muito trabalho; e há um outro lado (que é o do Jorge Amado, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa) que é muito mais nacionalista. Nós tivemos um predomínio muito grande da literatura brasileira de feição nordestina, folclórica (so­bretudo de Jorge Amado) e com isso perdemos a oportunidade de conhecer outros autores brasileiros.

DO VIAJANTE AO ROMANCISTA

Em 2002, publicou o romance «Lourenço Marques» e, em 2005, «Longe de Manaus» (que recebeu o Grande Prémio Ro­mance da APE). As suas viagens (reais ou literárias) são tam­bém viagens na língua portuguesa? Isto porque os lugares a que alude nestes romances são também lugares da língua portuguesa...
Eu costumo dizer que não sou patriota, no sentido em que não acho que uma coisa é boa só por ser portuguesa. Mas fasci­nam-me muito os portugueses, sobretudo os portugueses que estão fora, e fascina-me muito o passado colonial de Portugal. A sensação da perda do Império foi o que me fascinou no «Lourenço Marques» e no «Longe de Manaus», que cruza Angola, a Guiné, o Brasil e Portugal. O que me fascinou foi essa sensação de perda. Para fazer o «Lourenço Marques», entrevistei cerca de 200 pessoas que tinham vivido em África. Eu nunca vivi em Áfri­ca, mas tenho um amigo que nasceu em Lou­renço Marques e que me pediu, da primeira vez que fui a Moçambique, que fotografasse umas ruas, urnas pastelarias, umas igrejas... Eu fui fotografar, mas tinha contratado um motorista para me levar a conhecer a cidade. Disse-lhe: Eu que­ria ir a estes lugares. E ele perguntou: O Sr. quer conhecer Maputo? Sim, quero conhecer Maputo. Ele olhou para a lista de lugares e disse: Não, o Sr. Viegas não quer conhecer Maputo... o Sr. Viegas quer conhecer Lourenço Marques.

Esses lugares já não existiam, ou não existi­am com esses nomes.
Exactamente. É preciso dizer que eu tenho uma grande admiração pelos retornados. O Fer­nando Dacosta, na altura, muito contra a corrente e muito contra o tom politicamente mais na moda, publicou uma reportagem em que dizia: "Os retornados estão a mudar Portugal". E é ver­dade. Um dos aspectos mais comoventes à dis­tância, independentemente daquilo que houve de desgraça e de infelicidade e de amargura e de ressentimento, foi a capacidade que Portugal teve de, mal ou bem, absorver cerca de 750 mil pes­soas em três meses. Recebeu-as mal, obviamen­te, mas essas pessoas transformaram a maneira de ser de Portugal. O meu pai também tinha vivido em África, e tinha muitas histórias de Lu­anda, e eu fiquei sempre muito desperto para esse mundo. Quando cheguei a Lourenço Mar­ques, disse: Eu tenho que fazer uma história aqui. Interessam-me esses portugueses que es­tão fora. Um dia, encontrei em Timor um grupo de portugueses que se juntavam para falar mal de Portugal. Eu dizia-lhes: "Mas então vocês es­tão 324 horas do país... Quando voltarem, como é que vai ser?" Eles respondiam: "Nós não voltamos". É uma paixão desmedida por um país que não podia ser de outra maneira.

O Francisco José Viegas também é apaixona­do por Portugal?
Gosto muito do Minho, dos vinhos, do mar, do Pocinho... Eu sou português. Gosto moderadamente de Portugal, como qualquer portugu­ês. Não há nenhum português que ame desesperadamente Portugal. Há sempre a frase: isto só podia acontecer em Portugal!

Voltemos à Literatura, porque ainda temos que chegar à poesia. O Francisco José Vie­gas também é cultor de um género pouco divulgado em Portugal: o romance policial. Como é que surge um romance policial? Pesquisa, investigação, curiosidade?
Surge-me por dois motivos: em primeiro lu­gar, porque sou preguiçoso, no sentido lato - ou seja, existe um modelo, que podemos seguir. Qual é o modelo? Crime, cadáver, investigação, maus e bons. Se está aqui o modelo, para que é que havemos de procurar outro? Não é por ser mais fácil. É porque toda a nossa vida cabe nes­se modelo. Toda a nossa vida. Quando dizemos homicídio, podemos dizer desaparecimento, medo, mistério, desconhecimento... Não é por eu matar quatro ou cinco pessoas em cada livro que vou ser preso. O crime, nos romances poli­ciais, vale como elemento de distúrbio, numa sociedade normalizada. Infelizmente, é cada vez menos literário e cada vez mais real... Eu costu­mo dizer: comprem os meus livros, que por ape­nas 14 euros não têm um nem dois nem três, mas quatro cadáveres [Risos]. Ou seja, sai mais ou menos a dois euros por cadáver, o que é bara­to, hoje em dia. Qualquer coisa em nós nos puxa para situações limite. Por outro lado, toda a literatura é, em certa medida, devedora do roman­ce policial. Ou seja, nas maiores crises da litera­tura a partir do séc. XIX (o romance é uma for­ma burguesa do séc. XIX), quando o romance deixava de ter história, foi o romance policial que disse: Não. O romance tem que ter princípio, meio e fim. Embora possa não se começar pelo princípio. A ordem é arbitrária, mas tem que existir uma ordem na história para que exista, provavelmente, uma ordem no mundo. O ro­mance policial, como forma literária burguesa, ordena o mundo. As pessoas querem uma or­dem na vida, querem uma explicação. Não há maus e bons. O meu detective é óptimo para defender os criminosos...

O seu detective, o Jaime Ramos, que já atra­vessou tantos dos seus livros, é de alguma forma um alter-ego seu?
[Risos] Não. É uma pessoa que eu conheço. Gosto dele porque tem uma biografia própria. Isto é um pouco anedótico, mas eu tenho extrac­tos de conta bancária do Jaime Ramos. Imagino como é o guarda-roupa dele. Tenho fotografias da casa dele, que passam de livro para livro. São personagens com uma certa vida, e por isso ten­to criar no livro uma vida com uma certa coerência, que provavelmente não existe noutro lado. Acho que toda a literatura (o José Cardoso Pires, aliás, dizia isso) é em certa medida polici­al, porque toda a literatura trata da morte, do mistério, do desaparecimento e da busca.

DA POESIA À CASA FERNANDO PESSOA

Já falámos do entrevistador, do viajante, do romancista. Cheguemos agora à poesia. Na antologia da sua poesia «Metade da Vida», confessa que "é avesso a falar de poesia, por entender que não se trata de literatura". E acrescenta: "poesia é sempre outra coisa, fica sempre mais além. O verso ideal, por isso, não devia escrever-se". Por que é que a poe­sia não se trata de literatura?
Há uma circulação dos objectos literários -dos livros - que não tem a ver com a poesia no seu estado puro. Não tem a ver com a imagina­ção da poesia no estado puro. É como se dissés­semos que a música no seu estado puro é o si­lêncio, que a nota perfeita, numa peça, é o silên­cio. E o verso às vezes é demais para explicar um lugar, uma palavra. Eu penso que a poesia - é essa a concepção que eu tenho - não releva da literatura. Releva sempre muito mais do discur­so religioso, muito mais do encontro com o ima­terial. A poesia dialoga com o invisível. A litera­tura dialoga com aquilo que pode tornar-se re­velado, visível. Por isso é que os romances são adaptados a filmes. Por isso é que a poesia não é adaptável a nada. Por isso é que eu nem sequer sei falar de poesia. Admiro imenso os críticos de poesia. Eles conseguem falar de poesia durante horas! Eu consigo ler um poema, gostar de um poema, e calar-me. Percebe? Está lá.

Aquilo que procura na poesia é diferente da­quilo que procura na ficção?
Quando eu era adolescente, procurava sedu­zir a colega do lado. Era muito mais difícil escre­ver-lhe um romance... Por isso é que Portugal é um país de poetas. [Risos] Quero conquistar a menina aqui do lado, por isso vou escrever-lhe «Os Maias»... Não pode ser! Vou seduzir esta pequena e vou escrever-lhe um soneto. Nessa altura, a poesia tinha uma utilidade (isto é um bocadinho caricatural, obviamente). Hoje, para mim, não tem utilidade nenhuma. Não o faço por razão nenhuma. Faço-o porque tenho de fazer.

Porque precisa?
Sim. Estou ali, há aquela paisagem, aquele instante, aquele relâmpago... Há um livro de um poeta cabo-verdiano de que eu gosto muito, que é o José Luís Tavares, que tem um título fantástico: «Paraíso Apagado por um Trovão». Para mim, a poesia é um paraíso apagado por um trovão. Há ali um relâmpago qualquer que eu não sei expli­car... Há coisas que as línguas não conseguem dizer.

O Francisco José Viegas assumiu recentemen­te o cargo de Director da Casa Fernando Pes­soa. Quais são os planos fundamentais para a casa do poeta?
Os objectivos para a Casa Fernando Pessoa são cumprir o orçamento. Este é o ponto um. Pon­to dois? Fugir ao orçamento. [Risos] Ponto três: conseguir escapar a salvo dessa fuga. Quem está a gerir equipamentos desta natureza sente sem­pre essa limitação do orçamento, mas acho que fizemos na Casa Fernando Pessoa, ao longo des­te ano, uma experiência que é um pouco única: com um orçamento diminuto, montámos em 15 dias a programação de um ano, e acho que correu de uma maneira francamente aceitável, para uma casa que não tinha programação. A Casa Fernan­do Pessoa não é a casa do Fernando Pessoa. É urna casa da poesia que existe em nome da herança de Fernando Pessoa. Obviamente que temos lá es­pólio de Pessoa – os óculos, a cigarreira, o Bilhete de Identidade, e essas coisas magníficas; temos a biblioteca pessoal; temos a célebre cómoda onde ele escrevia; mas é sobretudo um lugar de encon­tro de poetas, de escritores, de gente que gosta de livros, e portanto a função é essa. Neste ano, além de continuarmos este programa, vamos lançar fi­nalmente a «Tabacaria», que irá chamar-se «Revista de Poesia e Literatura», e vamos organizar uma grande coisa que se chama «Lisboa, cidade do Livro» (podia ser «Famalicão, cidade do Livro», mas é em Lisboa) que ocupará os 30 dias antes da Feira do livro. Há também um trabalho de coo­peração... Provavelmente, daqui a uns anos, teremos uma Casa Fernando Pessoa em São Paulo, no Brasil. Estive na inauguração do Museu da Lín­gua Portuguesa (em São Paulo), e Fernando Pes­soa é o poeta mais citado ao longo de todo o mu­seu, o que diz bem do impacto do Pessoa no Bra­sil. Eles conseguiram livrar-se um bocadinho des­se ressentimento pós-colonial em relação à lín­gua portuguesa. É muito bonito.

Entrevista de Filipa Leal com fotografias de Pedro Tavares
in “das Artes e das Letras” – suplemento distribuído com o jornal “O Primeiro de Janeiro”
– 22 Janeiro 2007