25.4.06

Skol Beats || Redondo, rodopiando

A Skol tem algumas raízes portuguesas – foi mão portuguesa que a criou no Brasil. Desde a década de setenta que a Skol é, além do mais, uma marca de referência – as suas campanhas publicitárias ajudam. Há uns anos, a Skol lançou a ideia de que é a única cerveja que desce redondo; as imagens do anúncio mostravam as outras cervejas descendo como um cubo pela garganta dos bebedores; só a Skol se apresentava como uma bebida redondinha, baixando com facilidade até ao estômago. Há uns Verões, há uns anos, a Ambev (o fabricante brasileiro) lançou a Skol Beats, uma cerveja «para público jovem». Eu desconfiei: as coisas «para público jovem» são todas hip-hop e de baixa qualidade ou, pelo menos, de qualidade adulterada pelo «gosto jovem» que é, geralmente, fácil e superficial. O lema da campanha era «a cerveja que desce redondo, rodopiando». Daí que a garrafa fosse, também ela, rodopiante, como se vê pela imagem. A desconfiança transformou-se em surpresa porque a Skol Beats, tirando o ar hip-hop (que nem era fundamental…), era saborosa e, ao contrário do que fazia crer a ideia «para público jovem», não se tratava apenas de uma «cerveja leve». Mantinha uma percentagem alcoólica, digamos, sustentável (5,3%) – e era uma lager, evidentemente, e de «coração frio». Ao bebê-la, depois de a boca a saborear, ficava uma sensação de geladinha bem aceitável. A sua garrafa totalmente transparente, ondulada, com mais aderência à mão, também facilitava. Utilizei várias vezes o radical «fácil»; também não me arrependo. A Skol Beats é uma cerveja fácil de beber, elegante, sem necessidade de muita preparação (como a existência de um salgadinho prévio) e pode beber-se pela garrafa, ao contrário das cervejas «sérias» (isto não é uma vantagem mas apenas uma constatação). O Verão brasileiro, mesmo quando ainda mal começou, também é um factor importante para apreciar convenientemente esta cerveja. Ela deixa um rasto de condensação do ar, um ligeiro travo cítrico e uma paleta de cores muito aceitável enquanto rodopia. Como na campanha publicitária, ela desce redondo, rodopiando. É mesmo verdade.

+MARCA: Skol Beats
Origem: Brasil
Álcool: 5,3%
Avaliação: **

Polar || Vento polar

A viagem entre Porto Alegre e Pelotas é coisa para três horas, mas quando tem na outra ponta do fio um convite para feijoada nesse fim de tarde ou noite e para um churrasquinho no dia seguinte ao final da manhã, o tempo de viagem é amenizado. A meio da viagem, inclusive, há uma paragem para provar croquetes superlativos, coxinhas bem temperadas e até bolinho de aipim que faz inveja. Luís Fernando Veríssimo fez várias viagens para encontrar o «pastel perfeito» e encontrou-o num shopping de Gramado, como conta num dos seus livros. Eu encontro bolinho de aipim em vários lugares e ainda não me decidi pela tabela classificativa. Seja como for, a velha Pelotas aguardava-me depois de percorrer a estrada que acompanha, ao longe, as lagoas originais do Rio Grande do Sul, onde açorianos antiquíssimos pensavam que estava o paraíso na terra. Uma feijoada (mais a promessa de churrasquinho gaúcho no dia seguinte) pede contenção àquela hora. Mesa resplandecente: a comidinha tinha sido preparada num fogão de lenha, temperada e apurada pelo tempo. Mas há aquele tempo de espera que uma feijoada sempre necessita – e que foi ocupado com libações exageradas com a Polar. Bênção dos céus. Tinham-me dito que era uma pilsener (embora a marca tenha acabado de lançar uma Polar Bock, mais forte e substancial), coisa que eu ignorei: fresquíssima, leve o suficiente para evocar a grande noite do Inverno austral, mas sem desmerecer de um final seco e sem o amargor das suas congéneres europeias, a Polar manteve-se até ao fim como companheira adestrada. Bebi demais, confesso. Mas nada me toldou naquela mesa familiar, cheia de riso e de noites antigas. Três vezes me servi de feijoada, umas doze de Polar. Não me arrependi, mas devo ter causado má impressão. No dia seguinte, a tranquilidade do sistema digestivo manteve-se e o churrasquinho foi recebido com mais pilsener. Saí de Pelotas com a impressão de que tinha descoberto uma cerveja muito, mas muito agradável. Sem contar com o resto.

+MARCA: Polar
Origem: Brasil (Rio Grande do Sul)
Álcool: 4,5%
Avaliação: **

Caracu || Rodeo e cervejão

Encontro muitas vezes, nas minhas andanças, cervejas más. Creio que, ao longo de um ano de crónicas, ainda não mencionei nenhuma delas, o que se explica facilmente: com tantas cervejas boas espalhadas pelo atlas, não há razão para começar pelas que caíram no saco das reprovadas. Muitas vezes, são más por causa da água que fornece as suas cubas; ou pela sua alta fermentação; ou pela sua baixa fermentação; ou pelo excesso de levedura que não filtrou; ou porque – vamos lá – me sabe mal. É certo que, para a apreciação da cerveja, não contam apenas as suas características orgânicas, o seu sabor a frio; há outros factores. Só assim se explica que eu goste de algumas cervejas absolutamente medianas, mas que evocam uma paisagem, um destino, uma hora, uma conversa que de alguma maneira está associada ao gesto de abrir uma garrafa gelada (ou não…) e de provar o líquido. Passeando pelo globo, ao acaso, encontram-se revelações e deparamos com desilusões. É a vida.
O caracu é uma raça bovina brasileira. Os criadores de gado locais identificam o caracu com o chamado «gado quatrocentão», trazido pelos portugueses, muito rústico e capaz de esforços brutais. O gado caracu, ao que me explicaram, serve para «carregar carga e puxar arado», não tendo proximidade com a raça nelore, que os carnívoros apreciam devidamente e fazem rodar no prato. Pois em 1899 apareceu uma cerveja com essas características e com esse nome, Caracu: para puxar arado e carregar peso. Há alguns anos (em 1996, e com a ajuda do actor José Wilker, que lhe deu a voz) foi rejuvenescida, mas mantém o essencial do seu aspecto rústico – cerveja escura, amarga, com poeiras de levedura, muito «alimentícia». Tendencialmente stout, portanto, se não fosse uma certa timidez na espessura, o que, aliado à sua dança com o caramelo, lhe empresta um tom doce que seria dispensável. Cai muito bem no copo e não recomendo que se beba directamente da garrafa: convém misturá-la antes de a beber. A sua espuma é volátil (outro defeito) mas muito branquinha. Os brasileiros do interior, sobretudo da zona do centro-oeste e do sudoeste, habituados ao rodeo, ao churrasco e aos duos sertanejos, dizem que ela dá pique. Esperam que compreendam o que isso significa. Não a misturem com pó de guaraná. Ela, por si só, já é pique suficiente. Deus nos livre, se posso exprimir-me assim.

+MARCA: Caracu
Origem: Brasil
Álcool: 5,3
Avaliação: **

Bohemia Weiss || Ela voltou, sensual

Foi uma excepção durante as comemorações da instalação da Cervejaria Bohemia sob o clima fresco e verdejante de Petrópolis, mal se sobe do Rio de Janeiro: nessa altura, e numa série de milhares de garrafas, apareceu no mercado a Bohemia Weiss, uma cerveja turva, de boa e acentuada fermentação, com sabor a trigo. Devemos-lhe algum destaque, uma vez que a tradição cervejeira portuguesa em terras brasileiras não é inócua ou distante: foram mãos portuguesas que criaram a Skol brasileira, e que a impuseram como a primeira cerveja vendida em lata. Hoje, é provavelmente a terceira melhor de todas as loirinhas pilsener e maisntream no mercado do lado de lá do mar. E porquê? Porque há muitas razões e eu voltarei a elas. Pois houve reivindicações e exigências do mercado: e a Bohemia Weiss regressou. Pode encontrar-se na sua garrafa de 550 ml, dose cabal e interessante para apreciadores: a sua cabeleira loira e turva ondula dentro da garrafa e cai em cascata para o copo, deixando na boca um tom amargo (para quem já consumiu a Franziskaner, por exemplo, sabe ao que me refiro) que, em princípio, não seria admissível nos trópicos do Atlântico Sul. Pois é essa surpresa que é importante distinguir: o que parece uma cerveja europeia (e é) acaba por se transformar num sabor muito apetecível. Numa das últimas vezes bebi-a nos arredores de Porto Alegre, em Nova Petrópolis, no restaurante Colina Verde. Meu Deus. O garçom avançou por entre as mesas, segurando a garrafinha de Bohemia Weiss numa das mãos, os copos na outra; serviu um bom pedaço – fez espuma. Agitou em seguida a garrafa, para que não assentassem lá dentro nenhumas matérias flutuantes, e tudo se parecesse com aquele vasto mar de sargaços de que falava Jean Rhys. Depois, completou o copo com aquela espuma turva, especiosa, danada, safada, gostosa. Enfim, cheia de libido. O preço é incomparável. O sabor, esse, não tem preço. É boa.

+MARCA: Bohemia Weiss
Origem: Brasil
Álcool: 5,6
Avaliação: ***

La Brunette || Morena e essas coisas

Os fabricantes da La Brunette, que também são responsáveis por uma ale nada negligenciável (a Schmitt Ale), advertem que o lúpulo utilizado na preparação desta cerveja é importado para o Brasil directamente da Nova Zelândia – esse é um pormenor na sua construção muito cuidadosa. Eu situá-la-ia na zona das dunkel mas a sua espuma volumosa e densa lembra-me quase uma stout. Na verdade, vista à luz, ela aproxima-se das grandes cervejas escuras alemãs ou vienenses (talvez um pouco mais), com reverberações de chocolate quando o brilho do sol incide sobre ela directamente. Chamar a uma cerveja assim La Brunette é um risco substancial que se corre – estamos no Brasil e la brunette deve ser traduzido por morena, e morena deve ser traduzido com o acréscimo colaborante de qualquer outra palavra que designe a sensualidade, a concupiscência, essas coisas. Uma cerveja assim deve ser assinalada: o sabor é acidentalmente adocicado mas, mal se afasta o copo, a boca dá-se conta de ter sido invadida por aquele tom amargo que faz as delícias do bebedor, que gosta de uma espuma prolongada e, quando está para aí virado, de uma boa densidade. Há uma certa harmonia entre a carbonatação moderada e a sensação de suavidade proporcionada pelos açúcares da fermentação e pelo amargor do lúpulo neo-zelandês. Como o Rio Grande do Sul tem Outonos temperados e tépidos, acho uma pena não ser mais fácil encontrá-la nas lojas, uma vez que é a cerveja ideal para sobremesas.

+MARCA: La Brunette
Origem: Brasil
Álcool: 4,5%
Avaliação: ***

Devassa Tropical Lager || Frescura sem frescura

Há cervejas brasileiras que me comovem. A Bohemia, a Cerpa, alguma Kaiser (sobretudo o chope da Kaiser tirado no Liliput, de Porto Alegre, em dois barris comunicantes), alguma Skol. Bebo-as sem pensar no destino da humanidade e sem outra evocação que não seja a de beber uma cerveja longe do compromisso de as beber: a maior parte delas requer uma boa dose de irresponsabilidade e de rapidez. É aquele tipo de cerveja sobre o qual reflectimos o suficiente para a aceitarmos como ela é. Não temos de dizer “oh não, hoje comi salada com demasiada cebola, não vai dar”, ou “tenho de pedir um queijo seco, oloroso, salgado, para acompanhar”. A maior parte delas, sendo apreciável, não deixa um travo amargo carregado de lúpulos de qualidade; tirando a Cerpa e a Bohemia, a maior parte das loiras brasileiras (refiro-me às cervejas, evidentemente) é agradável ao paladar (porque não o fere) e suave na boca (porque não sabe agredir e, na verdade, são bem construídas com muito poucas excepções). A Devassa Tropical Lager é, não duvido, a melhor lager de grande distribuição. Tem aquele tom amargo final, próprio das pilsener. Seca, com um levíssimo sinal da presença de frutos acidulados, a devassa loirinha merece encómios. Em chope, a espuma é mais cremosa, evidentemente, mas em garrafa não perde o essencial da sua coroa consistente e perdurável, protegendo o corpo leve e ondulante de uma musa caminhando pela Gávea em certas horas do entardecer. Podia falar da Lagoa, claro, da Lagoa Rodrigues de Freitas, e uma certa esplanada onde a bebi também, porque as cervejas ou nos fazem sonhar e desaparecer do mundo dos comuns mortais, ou não vale a pena insistir. Ela é devassa. Tem aquela frescura intensa e comovente – mas, para o idioma do Brasil, não tem frescura, se me entendem. É bem feita. Bem torneada.

+MARCA: Devassa Tropical Lager
Origem: Brasil
Álcool: 4,8%
Avaliação: ***

Schmitt Ale || Um brilho natural

Já escrevi, a propósito de outras cervejas construídas a sul do equador, que é um engano pensar que nos “países tropicais” não se encontram cervejas de “grande densidade” ou, pelo menos, distintas do paladar e da textura habitual das lager de cor clara. A Schmitt, originária de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Brasil, é uma delas – o facto de a região ter recebido uma grande percentagem de imigrantes provenientes do norte e do centro da Europa tem a ver com as tradições das cervejarias artesanais locais, que mantêm padrões de qualidade muito aceitáveis. Esta, existe em três variedades: a Ale, a La Brunette e a Barley Wine (que não provei), e nenhuma delas é recusável sob nenhum ponto de vista. A Schmitt Ale tem uma cor ambarina, alaranjada-escura, com fermentação na própria garrafa (sendo natural que haja depósito em algumas), uma explosão de gás muito aceitável e acolhedora. O aroma é equilibrado, sem marcas de levedura, com um leve apontamento de fruta (limão ou lima), e o sabor é prolongado mas consistente. E uma surpresa: a sua espuma não se dilui imediatamente; dada o seu processo de fermentação, não é crime que se volteie o copo enquanto repousa – logo se forma um levíssimo creme que lhe dá vida e bom aspecto. Aconselho vivamente que se experimente, depois de mergulhar algumas garrafas num balde de gelo, numa tarde de calor.

+MARCA: Schmitt Ale
Origem: Brasil

Álcool: 5%

Avaliação: ***

Devassa Tropical Ale || Malandragem

Surpresa absoluta para mim, carioca algumas vezes por ano. Provei a Devassa Lager, imagine, numa feira do livro e achei graça, como toda a gente, ao slogan escolhido: “Um tesão de cerveja.” Com um objectivo destes, qual a cerveja que passaria despercebida? Nenhuma. A Lager era boa, muito boa, mas só uns dias depois provei a sua Ale, antecedida do aviso: Tropical. Seja, pois, a Tropical Ale: ruivinha, dançarina, maneirinha mas com um corpo que providencia fantasias gloriosas e indizíveis. Carioca de gema, a Devassa Tropical Ale é uma prova de que se pode fazer cerveja ruiva sem ter de evocar, invocar ou recuar até às cervejas de abadia – uma mania europeia e, agora, portuguesa. A Devassa Tropical Ale é genuinamente sensual, cremosa, ligeiramente amanteigada, escorregadia, com uma luminosidade bem conseguida nos seus ares translúcidos, derrapantes. Encorpada, sem dúvida, e com ligeiros tons de açúcar que contrastam com elementos florais, à mistura com maçã verde. A espuma? Decentíssima, esperta, fescenina, levantando voo de cada vez que o copo faz aquela viagem saborosa separando-se da boca e sendo devolvida à mesa do bar. O aroma, a princípio tem marcas de caramelo, que depois se esvai e desaparece para valorizar os lúpulos que lhe dão amargor suficiente. Lembro-me das esplanadas da zona sul do Rio nestas ocasiões – a Devassa é uma cerveja chique, digam o que disserem, sensual; tem aquela marquinha de biquini e de areia de Ipanema em entardeceres do Posto 9, quando se caminha pela Rua Farme de Amoedo em direcção às praças do interior, diante dos morros. Para cerveja carioca é excelente.

+MARCA: Devassa Tropical Ale
Origem: Brasil
Álcool: 4,8%
Avaliação: ***

Eisenbahn Dunkel || Distinção

Não tenho grande explicação para isso, uma vez que não visitei a fábrica da Eisenbahn em Blumenau, mas estas cervejas de Santa Catarina podem orgulhar-se da sua boa qualidade e da clareza com que o bebedor as reconhece num lugar logo acima da média. Isto é ainda mais surpreendente para quem acha que todas as cervejas brasileiras são claras, aparentemente leves e admitindo milho e arroz na sua fermentação. No caso da Eisenbahn Dunkel estamos diante de uma cerveja de tons ruivos escuros à luz do dia, castanhos-escuros no copo, homogénea e equilibrada – mas com um sabor intenso de noz e caramelo, um nadinha inesperado de caju no final, um pouco de baunilha na boca à mistura com café. Quanto à espuma, rescende pouco a caramelo (o que é uma surpresa nas cervejas escuras em geral) e a cor não o desmente, embora desapareça frequentemente, à boa maneira das dunkel originais, nas quais o bebedor não procurava espuma mas intensidade, o que não lhe falta. Como nota de prova suplementar, há indícios de maltes bem tostados, e, volteando a cerveja no copo as suas ondas de espuma profunda dão a impressão de uma vida interior agitada, complexa e agradável de beber. Pessoalmente, tenho-a como uma das boas cervejas do Brasil, de construção muito cuidada e com fiéis que acabam por tornar-se fanáticos. A Eisenbahn, que também produz uma Pale Ale e uma Pilsener fantásticas, está de parabéns e merece distinção.

+MARCA: Eisenbahn Dunkel
Origem: Brasil
Álcool: 4,5%
Avaliação: ***

Baden-Baden Red Ale || Do frio dos trópicos

Não sei se sabem onde fica Campos do Jordão. A cidade orgulha-se de ser a mais europeia das brasileiras; não é verdade mas serve como indicador. O que há em Campos do Jordão, quando nós estamos a suar nas praias, é isto: frio. Mais: hordas de paulistas, sobretudo, disputando todas as moléculas de frio disponíveis no ar. Não é nada que se compare à minha peregrinação a Cambará do Sul, na serra gaúcha, mas para paulista é simpático. Seja. Ora, o que me comove em Campos do Jordão, já que não pode ser o livro de Dinah Silveira de Queiroz sobre aquelas paragens, é a cerveja Baden Baden. Várias: a pilsen, fresca e agradável; a premium bock, aromática e alcoolicamente comovente; a stout dark ale, calórica e cremosa – e a red ale, talvez a minha preferida, ruivinha de se lhe tirar o chapéu (no caso de Campos de Jordão, o gorro e o cachecol). O aroma de lúpulo é transcendental, misturando-se a gomos de frutos apreciáveis, um ligeiro toque de amoras até, com um final amargo e capaz de me obrigar a pedir outra. Como gosto de bitters, daquelas inglesas sensuais sob a capa de rispidez, a red ale de Campos do Jordão, esta Baden Baden, com os seus 9,2% de álcool, pede sempre complemento: um queijinho salgado, um aroma de cozinha. Muito boa.

+MARCA: Baden-Baden Red Ale
Origem: Brasil
Álcool: 9,2%
Avaliação: ****

Eisenbahn Pale Ale || Adolescência

Dizia-me alguém que tinha tentado beber várias cervejas que eu recomendei e que não conseguira reconciliar o seu palato com os vários sabores e os vários líquidos. E não descansou enquanto não regressou à sua imperial. É isso que tem de bom a cerveja, confesso: entre uma pilsener e uma weiss, passando pela lambic ou pela porter, das lager às stout com curvas acentuadas nas melhores bitter, o bebedor muda de continente e de papilas. Eu oscilo muito nessa matéria, tanto prefiro uma daquelas fresquíssimas indian pale ale como me perco agitando as nuvens que circulam dentro de uma garrafa de cerveja de trigo. A variedade não me assusta e estou convencido de que é uma vantagem inegável. Depois, cada um escolhe o sabor mais adequado, o peso mais confortável e a ocasião mais a jeito. A Eisenbahn Pale Ale é uma das boas tentativas (tirando as canadianas e americanas) de fazer boa cerveja europeia no Atlântico sul, mais exactamente em Blumenau, Santa Catarina, Brasil. E, a meu ver, representa uma importante contribuição para definir o que é o gosto médio em matéria de cerveja: olhada à luz do sol, tem reflexos de cobre; observada a cru, directamente, o tom palha é acentuado, loirinha do sul, com aquele pique nostálgico. Já na boca, abre os seus braços oferecendo frutas delicadas, fermentações sublimes, flores de bromélia e azália ou hortênsia. Provei-a há dois anos (juntamente com a dunkel, a pilsen, a kölsch e bock) e fiquei-lhe fiel como a poucas coisas. Imagine-se, portanto. Desta vez, nem deixei que sorrisse – bastou recordar-lhe o aroma, volteando no copo alto, ligeira e libidinosa, mas de saltos rasos, adolescentes, e jaquetinha curta, de umbigo passado pelo sol. Estou a falar da cerveja, naturalmente.

+MARCA: Eisenbahn Pale Ale
Origem: Brasil
Álcool: 4,8%
Avaliação: ***
Eisenbahn Pilsen || Blumenau, Brasil


Provei, esta semana, umas tostas com compota de cebola roxa e creme de queijo, e recomendaria que isso servisse para acompanhar as primeiras cervejas da Primavera. Neste atlas das cervejas do mundo há sempre surpresas, já o tenho dito. Desta vez, apareceu uma excelente cerveja do sul do Brasil – a Eisenbahn, de Blumenau (estado de Santa Catarina) que pode entrar na colecção dos líquidos muito apresentáveis para este ano. Alguns amigos fazem excursões periódicas, atravessando as paisagens do Paraná, descendo pelas suas serras, desde São Paulo, para um fim-de-semana em Blumenau, bebendo a Eisenbahn. Como eu os compreendo. Melhor do que isso, só namorada gaúcha. Quanto à cerveja, é suave e cheia de respirações invulgares, tratando-se de uma experiência sem grandes ambições; tem um fundo de citrino que pode ser exasperante para certos palatos, estranho, mas com uma boa espuma no copo – cristalina e, ao mesmo tempo, sedosa, nada que lembre uma cerveja aguada e sensaborona. Totalmente germânica, na sua tiragem a copo (mencionar o chope brasileiro seria diminuí-la, uma vez que a sua categoria está muito acima). Excelente para beber em todas as ocasiões, a Eisenbahn é quase um mito no mundo das cervejas artesanais brasileiras, citada de Norte a Sul, do Chuí ao Oiapoque.

+MARCA: Eisenbahn Pilsen
Origem: Brasil

Álcool: 4,5%

Avaliação: ****

21.4.06

Angola: reconstrução e reinserção

José Lello (Público de Segunda, 17 de Abril de 2006)

Angola precisa de tempo para fazer as suas reformas e ajustes económicos e sociais e para refrescar a sua normalidade democrática. Por isso, em muitas das opiniões que têm sido expressas, há boas doses de intolerância e de acinte. Angola não é a Noruega. Esteve em guerra durante trinta anos e só há quatro usufrui dos benefícios da paz



A visita do primeiro-ministro José Sócrates a Angola despertou um incontido e interessante torvelinho de emoções, posições e opiniões que se misturam, por vezes, de forma um pouco confusa. Por isso, nem sempre se consegue distinguir bem onde termina uma posição ou opinião e começa a emoção. Nalguns casos, é mesmo visível que quem assim opina tem uma dupla identidade e metade do coração em Portugal e a outra metade em Angola. No fundo, as afinidades entre portugueses e angolanos são tão profundas que uns e outros não resistem, emocionalmente, a meter a foice em seara alheia. Mas não é dessa forma que dois Estados soberanos e que se respeitam se devem relacionar.
Angola tem muitos problemas. Todos sabem isso, mesmo que o conhecimento que deles têm alguns comentadores se baseie apenas naquilo que lêem nos jornais, sem conhecerem, portanto, a realidade concreta angolana, sobretudo a mais recente, que se desenvolveu ao longo destes escassos quatro anos de paz. Mas o que muita imprensa e opinion makers mais gostam de focar são os problemas de corrupção, da falta de democracia e da violação dos direitos humanos. Estão de tal forma obcecados nesse registo que não se percebe bem se estão mesmo interessados em descodificar os contornos reais da actualidade angolana e se estarão verdadeiramente determinados em apoiar a reconstrução nacional, a reinserção social e a normalização política e cívica que a paz tornou possível. Provavelmente há quem esteja interessado em dar uma imagem negativa de Angola, apenas e só porque é o MPLA que está no poder. Essa é uma postura redutoramente partidária e, por isso, pouco isenta.
Essa é, assim, uma imagem distorcida e injusta de Angola, que precisa de tempo para fazer as suas reformas e ajustes económicos e sociais e para refrescar a sua normalidade democrática. Por isso, em muitas das opiniões que têm sido expressas, há boas doses de intolerância e de acinte. Angola não é a Noruega. Esteve em guerra durante trinta anos e só há quatro usufrui dos benefícios da paz. O país ainda vive o drama sem fim das sequelas da guerra, cujos custos se estimam em 20 biliões de dólares. Permanece o drama das vidas destruídas e desmembradas, das populações deslocadas, de uma administração que desapareceu em muitas regiões, onde as infra-estruturas ficaram completamente arrasadas e o Estado se quedou globalmente desestruturado. Angola não pode, nenhum país o consegue, sair de uma guerra tão dramática e deter desde logo padrões de democracia equivalentes aos modelos europeus mais avançados. Luanda, por causa dos deslocados, tem hoje quatro milhões de habitantes, muitos deles amontoados nos musseques, quando as estruturas da cidade não suportariam, porventura, mais de meio milhão de pessoas. É o caos de um lado e o deserto nas regiões abandonadas do outro. Em muitas dessas regiões não se pode plantar a terra nem desenvolver actividades económicas por causa dos milhões de minas que aí foram abandonadas. Só o esforço de desminar o país é algo de gigantesco em termos humanos e financeiros.
Angola precisa da ajuda de todos para se desenvolver. O resto, previsivelmente, virá por arrastamento. E, por razões de afinidade histórica e cultural, quer, sobretudo, a participação portuguesa nesse projecto grandioso. Se conseguir o desenvolvimento a que aspira, estarão criadas as condições para se erguerem as devidas estruturas económicas, sociais e democráticas, o que, convenhamos, nem sempre é fácil em África.
Se uma coisa me impressionou durante a minha recente deslocação a Luanda como secretário para as Relações Internacionais do PS para contactos com diversos altos dirigentes do MPLA, foi o facto de ter constatado um empenho sério e determinado da parte dos meus interlocutores em promover o desenvolvimento económico e social do país e em consolidar as suas instituições democráticas, envolvendo todos os angolanos no difícil processo de reconciliação nacional. Além disso, o país tem feito um grande esforço de estabilização económica e financeira e nisso tem obtido bons resultados. São tudo sinais de uma vontade de mudança que não podem ser ignorados.
Por outro lado, seria interessante que quem expende tão taxativas opiniões sobre a situação política angolana se interrogasse sobre a quem imputar responsabilidades pelo facto de o recente processo de reforma legislativa e constitucional que deveria conduzir a eleições não ter avançado em tempo útil. Dei-me conta de que, ao nível parlamentar, em Luanda se pretendeu gerar amplos consensos que credibilizassem o processo. Pareceu-me, além disso, que o Governo procura estabelecer um relacionamento aberto com o Parlamento angolano, onde existe um debate político interessante e onde presta contas aos partidos políticos que nele têm assento, situação quase nunca referida nas catilinárias militantes.
Outro dos aspectos que revelaram a parcialidade de quem jamais consegue distanciar-se de uma postura de interferência abusiva nas questões internas de Angola foi essa tentativa de reduzir a viagem do primeiro-ministro José Sócrates ao mero interesse económico. Até se poderia perguntar se haverá mal nisso. Sobretudo quando se esquece que o Governo português tem uma cooperação intensa em muitos outros domínios, de onde sobressaem a educação e a saúde, nos quais ali existem necessidades dramáticas. Isto já sem contar com o facto de o ensino também ter estado presente na deslocação do primeiro-ministro José Sócrates.
É preciso bom senso nesta floresta opinativa e, por vezes, nas cortinas de fumo que se pretendem lançar sobre Angola, que só prejudicam desnecessariamente a percepção e as relações entre os dois países. Se Portugal não faz juízos de valor em relação a outros países, porque simplesmente não tem de se intrometer nos assuntos internos de Estados soberanos, por que razão havia de o fazer em relação a Angola? Ambos os países só têm de se esforçar para manter um bom nível de relacionamento e resolver os problemas de percurso que possam surgir. Portugal e Angola evidenciam a vontade expressa dos seus para aprofundarem os seus laços de amizade e de cooperação, de forma franca e sem complexos nem parti-pris. Ajudando-se mutuamente, porque ambos os países têm muito a partilhar um com o outro. secretário para as Relações Internacionais do PS

1.4.06

POIS TU FOSTE ESTRANGEIRO. Em 1975, a xenofobia nacional, herdada do salazarismo e do que o antecedeu (o provincianismo pacóvio e a Inquisição), foi mais uma vez posta à prova diante da chegada de meio milhão de portugueses vindos das antigas colónias. Deserdados e hostilizados pelo poder político-militar da época, que lhes desaprovava a biografia e as ideias, os retornados mudaram Portugal em poucos anos: evitaram que a província desaparecesse da forma abrupta, transportando consigo criatividade, energia e vontade de vencer; contribuiram para mudar os hábitos e os costumes de um país medíocre cheio de moralistas pálidos e machistas. Fizeram-no contando também com a hostilidade do cidadão comum, que os considerava portugueses de segunda. Eles, sim, os herdeiros legítimos de Afonso Henriques, eram os «portugueses». Desaprovando largamente a vinda de pretos e de emigrantes de Leste, sem falar dos brasileiros, os «portugueses» viveram os anos oitenta e noventa à sombra de muito do que os estrangeiros fizeram por eles – das auto-estradas à Expo98. Os «portugueses» não se incomodaram com o facto de milhares de trabalhadores africanos viverem em condições degradantes nos estaleiros do Alqueva, no lamaçal da Expo e nas encostas da Venda Nova. Apreciavam, até, o ponto de vista «étnico», com os bares caboverdianos e as discotecas angolanas, ou o serviço doméstico barato – mas nunca prestaram atenção (salvo quando eram atingidos) à espiral de violência que tomava conta dos subúrbios e lhes destruía os comboios de Sintra. Daí, passaram a olhar de viés os brasileiros: entre eles, os dentistas (que vieram tornar mais acessível o mercado) e os empregados de lojas e restaurantes (que atendiam melhor). Depois, vieram os emigrantes de Leste, que – mesmo sujeitos às mafias criminosas que andavam à solta pelo País – pela sua competência conquistaram lugares na construção civil, no serviço doméstico e na pequena indústria (muitos deles com qualificação superior). Isso está tudo muito bem, mas os «portugueses» também acham que eles lhes tiram o lugar (até há enfermeiros espanhóis, imagine-se), que eles acabam por subir na vida, por comprar casa e assentar família. Que eles, um dia, podem votar. Que os filhos deles, um dia, podem ir parar à administração pública, às universidades. Que um dia eles – que «vieram com uma mão à frente, outra atrás», como manda dizer a tradição – vão criar empresas e enriquecer. Esse cenário é inaceitável para os «portugueses». Que os estrangeiros e emigrantes estejam entre nós, é uma coisa (podem viver nos estaleiros, apanhar o autocarro das cinco da manhã, os seus filhos tratados pelas misericórdias e organismos de «inserção social», podem as mulheres viver aprisionadas em bordéis de «empresários da noite» pela província fora, podem correr para as filas de legalização durante a madrugada). Inteiramente diferente é que façam disto a sua terra; «eles» não passam de brasileiros, caboverdianos, russos, ucranianos, moldavos ou marroquinos e paquistaneses. Este ano podem entrar 6.500. Os cavalheiros da indústria já vieram dizer que é pouco. O governo mantém que basta. Se forem precisos mais (a expressão é chocante, não é?), já se sabe: entram ilegalmente. Sempre podem viver nos estaleiros, embebedar-se com vodca de Sacavém e com o tempo há-de ver-se. Não pensem é que podem ser «portugueses».
Quarta-feira, Janeiro 21, 2004 / AVIZ

ESTRANGEIROS & EMIGRANTES, 3. E nos guichets, nos bancos, nas repartições, nas conservatórias, incomoda-me bastante aquela pontinha de racismo vulgar: não se dão todas as informações, não se é tão atento e solícito quando são pessoas de cor, por exemplo. Aquele ar de superioridade que o mau funcionário adquire quando trata com essa gente, exaspera-me. É a pior das vulgaridades, uma maldade genética, aquela contra a qual não se pode fazer nada. É por isso que também sou contra a discriminação positiva; porque a discriminação em geral me parece um pecado sério.

Quinta-feira, Janeiro 08, 2004 / AVIZ

ESTRANGEIROS E EMIGRANTES. Vários estudos europeus têm dado conta de uma situação alarmante em relação ao nosso país. Eu tenho sérias dúvidas sobre a metodologia de alguns deles, mas reconheço que nem todos podem estar errados. Já não me comovem os estudos sobre a depressão nacional e sobre o estado de infelicidade que aparecem em algumas dessas sondagens europeias – fazem parte do chamado estilo português e são o resultado de duas décadas que, tendo sido prodigiosas em termos de transformações sociais, foram menos sérias em outros aspectos. O chamado défice (eu escrevo o chamado défice porque uma larga percentagem de portugueses desconhece do que se trata) é o resultado dessas duas décadas de asfalto, betão, fomento de uma indústria de corrupção e de subsídios, diminuição nos investimentos em ciência e educação, férias no Algarve e telemóveis ao desbarato. Isso tinha de ser pago. Estamos a pagar. É bom que não se esqueça.
Mas há um dado incómodo, ao qual os portugueses dão pouco relevo – mas que tem na sua base uma questão de carácter e uma matéria de sensibilidade geral. Tem a ver com as questões da emigração e com o racismo.
O ministro Paulo Portas acha que o império nunca foi racista, que o colonialismo português foi sempre benévolo e carinhoso. Trata-se de uma mistificação alarve e, em certa medida, criminosa. Criminosa porque, dita desta maneira, ignora parte essencial da nossa História, como se tivéssemos de esconder de nós próprios as chagas que transportámos; alarve porque tem objectivos políticos menores e banais, evidentes a olho nu. Sim, o nosso império era provinciano, a nossa crueldade foi relativa – se comparada com a brutalidade espanhola e o racismo anglófono. Mas nada nos autoriza a essa lavagem indigna do nosso passado. Nessa matéria – e como escrevi um livro com o título Lourenço Marques, em que defendi o direito de os portugueses assumirem a sua margem de felicidade africana – não deve haver preconceitos.
Mas o pormenor mais assustador tem a ver com os emigrantes que neste momento vivem em Portugal. As posições adoptadas pelo PP, nomeadamente, no que diz respeito à entrada de cidadãos estrangeiros e em matéria social e assistencial, parecem-me próprias do pior que há em nós, e que esses estudos europeus têm revelado: os portugueses têm escondido, lá no fundo, um pequeno pecado racista, e são os europeus menos receptivos a acolherem cidadãos emigrantes. Não é motivo de orgulho. Portugal, nessas duas décadas prodigiosas (retiro a expressão a António Barreto) utilizou a emigração como motor de desenvolvimento. Fez pontes e estádios com fundos europeus e emigrantes de Leste e de África. Nem sempre tratou bem esta gente. Se um dos partidos da coligação no governo se prepara para adoptar políticas de exclusão em relação à emigração e aos emigrantes, isso constitui – claramente – uma pulhice. Política e humanitária.
Portugal tem enriquecido o seu tecido social com essa presença de brasileiros, de gente de Leste, de africanos. Os brasileiros que estão em Portugal, ao contrário do velho racismo português, deram-nos lições de abnegação, de esforço, de criatividade e de alegria. Os emigrantes de Leste são uma das forças de trabalho qualitativamente mais honestas e sérias que temos entre nós. Os africanos, isolados e metidos em guetos em redor de Lisboa, são a memória desse racismo que não conseguimos controlar nem dirimir.
Ignorar essa gente, tratá-los como cidadãos de segunda categoria, diminuir os seus direitos, escondê-los, é vergonhoso. Não sou sensível ao discurso monótono da esquerda sobre o assunto, porque também acho que ser de esquerda não tem nada a ver com isso. Basta estar acordado.

Quarta-feira, Dezembro 31, 2003 / AVIZ