5.12.06











Mim ser bom pessoa



Vasco Graça Moura
(Publicado no Diário de Notícias em Agosto de 2005)

As línguas, tal como as nacionalidades, as identidades, os seres humanos, as artes e muitas coisas mais, nunca foram entidades comandadas por uma racionalidade estrita ou por uma lógica sem falhas. Entre nós, já Camilo Castelo Branco ironizava, há bem mais de um século, a propósito, salvo erro, do jovem Joaquim de Vasconcelos, que, regressado da Alemanha, propunha que se dissesse “estejai”, em vez de “estai”.
Vem isto a propósito do livro A Língua Portuguesa em Mudança, organizado por Maria Helena Mira Mateus e Fernanda Bacelar do Nascimento (Caminho, 2005). É uma útil investigação sobre a maneira como a língua falada e escrita na comunicação social pode condicionar certas tendências do português que falamos.
Maria Helena Mira Mateus (MHMM), por quem tenho grande consideração e estima pessoais, assina uma densa introdução, “A mudança da língua no tempo e no espaço”, cujas últimas páginas, todavia, me deixam muito apreensivo. Aí, depois de postular a necessidade de uma norma-padrão, “como referência da produção linguística e como garante da aceitabilidade de um certo comportamento no contexto sócio-cultural em que estamos inseridos”, da qual “a escola é especial depositária” e que tem “justificações sócio-políticas e culturais, de carácter pedagógico e comunicativo”, MHMM não encontra solução para as dificuldades de definição dessa norma-padrão, de modo a ser possível circunscrever o que é “correcto” e o que é “incorrecto”.
E passa a imputar a “uma alta percentagem de subjectividade” a condenação de certas construções ou formas lexicais. É esse o primeiro passo de neutralização da própria norma-padrão cuja necessidade e cuja defesa julguei entrever algumas linhas antes. Imputar à subjectividade o que decorre de um conjunto de factores independentes da lógica, tem como efeito desvalorizar, precisamente, a norma-padrão.
Mas meu alarme vai mais longe: quando MHMM considera como “alternâncias possíveis”, por ocorrerem “com frequência” e se justificarem “linguisticamente” formulações como “a maioria dos estudantes passaram no exame”, ou “o prédio que o Paulo vive é moderno”, ou ainda “O autor que eu mais gosto é Aquilino”.
Na mesma linha, são em seguida formuladas algumas interrogações, para as quais a rejeição de uma auctoritas que possa decidir sobre a correcção à luz da norma-padrão acaba, em última análise, por abrir a porta às mais bizarras permissividades. Por exemplo, “há-dem”, quanto a “hão-de”, “pensar de que” por “pensar que”, “houveram muitos acidentes”, por “houve muitos acidentes”…
E a autora pergunta-se “como saber o que se pode aceitar e o que se deve reprovar?”. Compreende-se a angústia da linguista ante uma questão a que a sua ciência não dá resposta. Mas isso não deveria levá-la, nem a admitir aberrações da nossa língua, como as exemplificadas, nem a invocar mutações socioculturais lá, onde a única explicação é o falhanço calamitoso da escola.
Sem ser linguista, penso que o grande problema está em haver um sector da Linguística que parece preocupar-se apenas com aspectos de eficácia comunicacional e mais nenhuns. Será a língua, como instrumento de conhecimento e apreensão do mundo, irisado de uma multiplicidade de valores afectivos, estéticos, sedimentados pela memória e pela história, pelo uso transgeracional, pelos autores, algo de que se considera poder fazer tábua rasa?
Aplicando justificações muito próximas das que leio em MHMM, eu posso afirmar que está bem (salvo seja!) uma frase como “mim ser bom pessoa”.
Em primeiro lugar, porque o destinatário da mensagem perceberá perfeitamente o que eu quero dizer, logo o nível estritamente comunicacional está alcançado.
Em segundo lugar, porque posso considerar que a formulação se limita a ser elíptica quanto a um enunciado de correcção indiscutível: (no que a) mim (respeita, considero) ser bom (enquanto) pessoa.
Como não será de admirar que a comunicação social um dia destes desate a brindar-nos com pérolas destas, é evidente que não se pode aceitar, ao contrário de MHMM, que “a norma portuguesa dotada de maior vitalidade e capacidade de fazer adeptos é a que transmitem os jornais, a rádio e a televisão”. Norma???
Bem sei que MHMM diz que não podemos aceitar este conceito sem critério, mas a verdade é que tal critério se dilui na nebulosidade com que é tratada a norma e assim entramos num círculo terrivelmente vicioso e, o que é pior, num ciclo grotescamente viciado…

4.12.06

TLEBS e discussões

Helena Carvalhão Buescu


1.Não estaríamos a ter esta discussão pública, e eu não estaria a intervir nela, se a Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967 tivesse sido substituída por uma Terminologia Linguística em 2006. É bom que haja consenso, no interior de uma comunidade especializada, sobre a terminologia e os conceitos que utilizam. O problema (e ele não pode nem deve ser escamoteado, porque é de fundo) começa no momento em que uma Nomenclatura Gramatical Portuguesa é substituída por algo que se auto-intitula Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário, vulgo TLEBS (convém olhar bem para acrónimos e suas implicações). No preciso momento em que a pouco subtil passagem para o terreno do Ensino Básico e Secundário é efectuada, e é mesmo reclamada por um grupo, o que acontece é que essa auto-designação passa a integrar o objectivo com que de facto foi elaborada: não "apenas", como alguns dos seus defensores dizem agora, produzir novas formas de estabilidade numa linguagem técnica, mas antes legislar para o Ensino Básico e Secundário e, nele, para a disciplina de Português.
2. A partir desse gesto de apropriação (porque o é), a TLEBS passou a dever (emprego o termo de forma ponderada) ser discutida por todos os que são agentes, intervenientes e interessados no ensino da disciplina do Português no Ensino Básico e Secundário, e não apenas por linguistas. Porque o Português do EBS não é nem pode ser concebido (gostaria tanto de reforçar esta afirmação!) como domínio único e especializado da Linguística.
3. Que alguns (sublinho alguns) linguistas confundam Português com apenas Língua Portuguesa, e que além disso considerem que sobre esta apenas se podem pronunciar os "técnicos da língua" que a Linguística formaria, como tem sido várias vezes repetido neste debate, apenas atesta a absurda redução (e reacção) tecnocrática que afecta alguns linguistas, mas que qualquer reflexão ponderada e séria manifesta como capciosa. Quanto a isto, estamos conversados.
4. Como mãe de crianças que frequentaram e frequentam ainda o EBS, e como pessoa que obteve na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde lecciono, uma formação específica em Linguística que, quero crer (em benefício de antigos mestres e actuais colegas), é superior à da generalidade de outras formações em diferentes áreas do saber, não só me considero habilitada a pronunciar-me sobre um instrumento que afectará a relação dos meus filhos com a língua que é a sua (porque se não afecta, então é inútil), como penso também que tenho até esse dever - mesmo quando (e precisamente porque) a minha visão é complementar da visão tecnicista (mesmo, convenhamos, de alguns pesadelos tecnicistas, de que darei apenas um ou dois exemplos) de que a TLEBS enferma.
5. Apenas alguns exemplos, que estão efectivamente na TLEBS (e até estaria eventualmente disposta a admitir que poderiam estar numa TL que não tivesse cometido o gravíssimo erro de não se saber distinguir de uma terminologia dirigida a um conjunto de graus de ensino que começa aos 6 e acaba aos 18 anos). Vejam-se por exemplo as especificações dadas para a formação de certas palavras por derivação (adjectivo relacional, adjectivo de possibilidade, nome agentivo, nome colectivo, nome de acção, nome de qualidade, verbo causativo, verbo incoativo/inceptivo). A pergunta central, no quadro de uma terminologia para o EBS, é: quem deverá saber tudo isto? Os docentes? Os alunos? Quais? Será este saber algum dia testado em exame nacional (o que o transformaria em virtualmente obrigatório)? Ou efectivamente, como se diz, em comentário à TLEBS, no site do Ministério da Educação, é deixado aos "docentes no terreno" latitude decisória (qual?) para "aplicar" esta terminologia, consoante o Programa? E se um docente, ou um grupo de docentes, entender que é isto que os alunos devem saber? Outro exemplo, dentro daquilo que aprendemos como género. O nome uniforme passa a ter de ser descrito de acordo com a seguinte terminologia: epiceno, sobrecomum, comum de dois. Complicações inúteis, para os alunos do EBS (é deles que estamos a falar): o "aposto" passa às seguintes categorias: "modificador nominal do nome apositivo", "modificador adjectival do nome apositivo", "modificador preposicional do nome apositivo" e "modificador frásico do nome apositivo". Mas estes são apenas alguns exemplos, embora esclarecedores.
6. Um dos efeitos mais perversos deriva do argumento, várias vezes apresentado, de que a TLEBS não é perfeita ainda (ainda?), e de que está a ser alvo de alterações. Algumas delas são indicadas no próprio site oficial do ME, e dou apenas um exemplo, cuja seriedade julgo não ter sido devidamente sublinhada, nas suas implicações. É que a meu ver infinitamente mais grave do que os exemplos atrás dados é o que se passa (o que se está a passar) com o conceito de "oração", substituído pelo não-coincidente (veja-se a sua definição) conceito de "frase". No site do ME, num dos documentos relacionados com a TLEBS, afirma-se que se pondera agora a reintrodução do conceito, que o ano passado foi excluído, de "oração". Não é isto sinal de precipitação e falta de ponderação na forma como a TLEBS foi implementada? Que tal um aluno a quem foi ensinado, até ao ano passado, que havia orações; que este ano está a aprender que deixaram de existir; e que talvez para o ano volte a aprender que afinal regressaram? É isto sinal de reflexão ponderada, pelas implicações que tem, inclusivamente nos manuais escolares, que correm o risco de ser hoje publicados para daqui a seis meses estarem desactualizados? E os pais? Terão de comprar manuais diferentes de cada vez que a TLEBS resolver introduzir uma alteração a algo que acabou de entrar em vigor? Ou tais alterações, sendo necessárias, não serão implementadas por razões económicas, que são sempre as piores razões neste domínio?
7. A partir do conjunto dos elementos aduzidos, e outros que lhes poderia acrescentar (mas não vale a pena), não posso deixar de concluir como segue: a TLEBS manifesta uma inexplicável (e inaceitável, quando se trata de perceber que ela afecta dezenas, centenas de milhares de crianças e jovens) precipitação na forma como foi concebida e aplicada; a TLEBS manifesta uma míngua de bom-senso, ao confundir uma Terminologia Linguística com uma TL para o Ensino Básico e Secundário; a TLEBS manifesta uma mais do que criticável aceitação de que o terreno da experimentação aplicada é a realidade escolar universal, que está assim sempre concebida sob o signo da flutuação, mais ou menos insensata; finalmente, da TLEBS (e das discussões a seu propósito) se infere a terrível confusão, que ela permite, entre Português, Língua Portuguesa e perspectiva linguística da Língua Portuguesa - confusão extremamente grave e com consequências redutoras, e por isso empobrecedoras, da concepção daquilo que o Português é: muito mais do que apenas a (importante) perspectivação linguística que integra, mas a que felizmente não se reduz.
[Professora de Literatura, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa]
Terminologias: a nova e a antiga


Maria Helena Mira Mateus


A terminologia linguística que está neste momento em experiência e em revisão tem sido motivo de muitas tomadas de posição públicas, artigos, abaixo-assinados e muita irritação. Certamente, as pessoas, "famosas" ou não, que se pronunciaram sobre a questão não sabem do que estão a falar, tantas e tão ingénuas são as afirmações erradas. Existem os erros de base e os erros de pormenor. Vamos aos primeiros.
O estudo de qualquer área das ciências - exactas, sociais ou humanas - altera convicções e representa um progresso na compreensão dessas áreas. O funcionamento da linguagem e das línguas é uma área estudada pelos linguistas: gramáticos, psicolinguistas, sociolinguistas. Eles estudam a compreensão que nos permite perceber uma língua e estudam a produção linguística dos falantes. Sabe-se hoje mais do que há 40 anos no que respeita à relação entre compreensão e produção linguística, entre aspectos cognitivos e aspectos verbais. Esse saber não é uma nebulosa nem uma "vaga ideia" a que nos podemos referir de qualquer maneira, mas exige termos de referência. Por essa razão, as gramáticas actuais utilizam termos que servem o que se já conhece do nosso uso da língua, embora muitos desses termos sejam os mesmos que já eram usados em gramáticas anteriores. Idênticas alterações conceptuais e terminológicas existem em todas as outras disciplinas. Será que a escola portuguesa não pretende acompanhar o progresso das ciências? Será que tudo o que é novo desperta uma reacção própria de um conservadorismo reaccionário? Será que o ensino não pode beneficiar dos avanços da ciência? Será que os professores que têm a seu cargo os primeiros ciclos escolares não estão à altura de conhecerem, e saberem como transmitir, o que se conhece hoje em qualquer ciência, inclusive a ciência da linguagem? E os professores que ensinam ciclos mais avançados? Será que não é bom que apresentem esse conhecimento usando os mesmos termos, ou é preferível que cada professor escolha a seu gosto os termos que utiliza?
Estou a referir-me ao ensino da língua que todos falamos, não estou, claro, a referir-me à análise do uso da língua como obra de arte, ou seja, o que se integra na teoria literária e no estudo da literatura em geral, que para isso não tenho preparação especial. Na realidade, qualquer programa de teoria da literatura mostra que os conceitos, e a consequente terminologia nesta área, são muito diversos dos que usa o mero estudo da língua. Veja-se: "os géneros poéticos"; "as categorias: poesia épica, didáctica, elegíaca, lírica, epinícia, trágica, cómica e bucólica (...) O possível/impossível como categorias fenomenológicas" (programa de teoria da literatura da FLUL). E são temas específicos da literatura a desconstrução, a fenomenologia, o formalismo, o marxismo, a narratologia ou o pós-modernismo (CECLU da UNL). Estes são termos que ocorrem em programas universitários. Mas nos outros níveis de ensino também se encontram termos nem sempre transparentes, como por exemplo, em Quadros de Referência do ensino secundário, as "réplicas e didascálias", o "cânone literário", "a ambiguidade, polissemia e conotação", os "mitos/arquétipos", a "epígrafe, o incipit, o explicit". Os linguistas não estão preocupados em discutir estes (e muitíssimos outros) termos mas, sim, a sintaxe, a fonologia, a morfologia, a semântica, etc., que são os que respeitam ao funcionamento da língua que todos utilizam.
Vejamos os aspectos concretos e de pormenor desta questão. Por tudo o que acima está dito, se considerou indispensável rever a Nomenclatura Gramatical Portuguesa publicada em Diário do Governo de Abril de 1967, que é a terminologia oficialmente utilizada no ensino. Esta terminologia fala de morfologia e sintaxe, mas da semântica só conhece a das palavras (não há semântica das frases?). Fala de substantivos :e adjectivos, mas acrescenta: "As palavras que participam da natureza substantiva ou adjectiva recebem a designação de nome, o que permite uma relacionação com "flexão nominal", "predicado nominal", etc." Os substantivos têm classificação, têm género, número, grau e ainda podem entrar em locuções. Os advérbios podem ter 15 classificações. A fonética sintáctica tem próclise, ênclise, crase intervocabular, elisão, ligação consonântica, haplologia intervocabular, entoação e ritmo, os complementos circunstanciais podem ser de nove tipos diferentes, entre eles o de instrumento (por exemplo, "cortei com a faca"). Já não se lembravam que era assim que se aprendia? Não sabiam que estes termos complicados faziam parte da terminologia que se quer actualizar? Até o epiceno faz parte da infância de muitos dos que gritam e prevêem as maiores desgraças para o país inteiro com a nova terminologia. Felizmente, muitas coisas mudaram desde então. Os escritores não gostam do modificador, do anafórico, do agentivo? Mas gostam com certeza da aférese, da síncope e apócope ou de prótese, da epêntese e da paragoge, ou de crase, da sinérese e da diérese que estão na Nomenclatura de 67. E não gostam do ataque ou da coda da sílaba? Lamento, mas não perceberão nada de qualquer livro que aborde a prosódia das línguas. Aliás, o que é necessário é que o professor saiba o que são estas duas partes da estrutura da sílaba (que também tem estrutura, imaginem!?) e que o faça perceber aos alunos, sem precisar de os obrigar a decorar o termo. E assim por diante.
Por favor, não falem do que não sabem e deixem-nos trabalhar sobre a actualização da Terminologia, tirar conclusões da experiência em curso e tornar o ensino da gramática do português menos obsoleto e integrado nos programas actuais que, evidentemente, não sofrerão qualquer alteração.
[Professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; co-autora da TLEBS

2.12.06

A CORTE NA CIDADE

(Publicado no O Globo a 1.12.2006)

Francisco Seixas da Costa*

Em finais de Novembro de 1807, uma imensa frota partiu de Lisboa, em direcção ao Brasil. Nela viajava a Corte portuguesa e, com ela, seguia também a esperança de conseguir garantir que a soberania lusitana ficava a salvo da invasão que o país então sofria.

Na memória colectiva de Portugal, este movimento da sua Corte nunca deixou de ser objecto de leituras polémicas. Para alguns, tratou-se de uma fuga sem dignidade, fruto de uma opção política de vistas curtas, estimulada por ambiciosas alianças.

Por muito tempo, poucos a interpretaram como uma decisão assente numa perspectiva estratégica, que poupava o poder real de Lisboa às humilhações que os seus congéneres europeus então atravessavam, em face da imparável ambição napoleónica. E, em particular, raramente foi vista como uma deliberada preservação da integridade simbólica desse mesmo poder, embora sedeado em outras terras do império.

A serenidade que a distância temporal nos concede aponta, nos dias de hoje, no sentido de privilegiar esta última leitura dos factos. Aliás, terá sido mesmo a historiografia brasileira quem cedo sustentou essa mesma interpretação.

Quaisquer que tenham sido as motivações centrais desta aventura – porque é disso que se trata, no sentido mais nobre do termo – uma coisa parece óbvia: ninguém, à época, terá sonhado as consequências que ela acarretaria para o futuro da colónia onde a Corte iria assentar os seus arraiais, desde Salvador ao Rio de Janeiro.

Dentro de um ano, precisamente dois séculos mais tarde, o Brasil vai lançar-se na comemoração do início dessa inédita expedição, a transferência de uma corte europeia – de armas e bagagens, de arquivos e de gentes – para um território periférico do seu império.

A nação brasileira vai ter um ensejo de reflectir sobre quanto da sua identidade civilizacional foi a resultante desse estranho contraste de mundos, de efeitos nas artes e letras, nas leis e nos costumes, enfim, uma imensa revolução cultural na vida de uma colónia que, precisamente por essa razão e de forma quase subliminar, começava a mudar de estatuto.

Com o regresso da Corte a Lisboa, também Portugal iria perceber quanto o país havia mudado, enquanto parte de si rumara pelos caminhos do velho império. E teria também de entender o destino que, entretanto, se desenhara para uma nova ordem, que iria transformar um príncipe do colonizador no agregador da vontade para a fundação de uma nova nacionalidade.

Nestas comemorações, o meu país não tem hoje nenhuma agenda própria. Queremos apenas contribuir, com o nosso património de memória, para quanto o Brasil deseje sublinhar desse tempo que nos foi comum.

Sem os menores complexos ou remorsos, Portugal vive a sua história com uma imensa serenidade e um grande orgulho. O tempo ajudou-nos a arquivar os conflitos e a saber retribuir os afectos, muito para além das hipérboles da retórica. Brasil e Portugal, pelo que foram e pelo que são, podem hoje dar-se ao luxo de revisitar, num exercício de imaginário assente numa língua e em tantas outras coisas em comum, os dias da presença da Corte de um deles na bela cidade que, afinal, se tornaria a capital do outro. Estou certo que saberemos fazer essa festa com alegria e amizade sincera.

* Embaixador de Portugal no Brasil

9.10.06

Entre o resultado e a moral: uma compreensão do voto em Lula

Por Luiz Claudio Lourenço
29/09/2006

Para quem diz que a maioria do eleitorado, o eleitor comum, de baixa renda e de baixa escolaridade, não é racional, que não pondera para fazer suas escolhas, que não é pragmático, a eleição presidencial deste ano mostra o contrário. Mostra que sua preocupação é de caráter pragmático, desvinculada de engessamentos ou convicções mais ideológicas e mesmo morais.

O eleitor, ao que parece, está mais racional que nunca, no que se refere à escolha à Presidência da república. Mas diria o leitor mais atento: e este sem-número de escândalos envolvendo petistas? Como podemos afirmar ser racional o eleitor apóia o presidente que pertence a um partido que está tão envolvido (direta ou indiretamente) em casos como o do mensalão, da compra de dossiês entre outros? Como o eleitor pode dar suporte e respaldar, com sua intenção de voto, atitudes no mínimo suspeitas e tão pouco virtuosas do ponto de vista moral?

Para compreendermos isso é preciso separar duas coisas primordiais: uma é o julgamento moral de um indivíduo; a outra, o julgamento político de alguém que ocupa a cadeira de presidente da República. Esta separação é fundamental, pois o julgamento moral de um indivíduo se dá de forma diferente do julgamento político.

A ação guiada pela moral deve ter pureza de princípios, independentemente de qualquer outra coisa. Ela é guiada pela virtude, pela fé nos valores e não é comprometida com nenhum tipo de resultado. Vale a máxima: "Faço que faço, pois acredito nisso independente do que possa acontecer". É o tipo de ação a que o pensador alemão Max Weber afirma ser guiada pela "ética de convicção". Não há aqui espaço para cálculo de perdas ou ganhos, há apenas as certezas dadas moralmente.

Mas política e moral são coisas que nem sempre caminham de mãos dadas e tem cada uma a sua própria lógica. Uma ação moralmente correta pode ser um desastre político. Esta constatação não é nova dentro da ciência política, aliás foi evidenciada no pensamento do filósofo político italiano Maquiavel, que não teve pudores em escrever que os objetivos na política (por serem de natureza coletiva e não individual, devemos aqui frisar) são primordiais e mais importantes que os meios.

A ação política deve ser orientada sobretudo pelos seus efeitos, pelos seus resultados à coletividade, enfim sua repercussão objetiva junto ao povo. Se na ação moral o indivíduo se guia pela "ética de convicção", na ação política é a "ética de responsabilidade" que baliza a ação. Quem governa não pode governar apenas pelos seus valores e convicções morais e orientações ideológicas - antes, tem que ser responsável por suas ações tomadas para e em nome da coletividade. Aqui a máxima é diferente: "Faço o que faço, pois é preciso que isso gere resultados". O político é responsável e responsabilizado mais pelo resultado objetivo de sua ação política que pelo purismo de seus princípios ou suas boas intenções. Para este tipo de ação, o julgamento pode ser, sim, fruto de cálculo racional, pois seus resultados são mais objetivos e palpáveis.

O político é responsável e responsabilizado mais pelo resultado objetivo de sua ação política que pelo purismo de seus princípios

Nos contos, para tomarmos um exemplo simples, Robin Wood roubou. Não importa de quem ou por que, sua atitude é condenável para todos que pregam que roubar é errado. Portanto, o julgamento moral dele já está dado por estas pessoas. Mas a conseqüência gerada para os povos da floresta beneficiados pelo produto de seus roubos faz sua ação política - para estes não pesa o fato dele ter roubado, mas o resultado efetivo deste roubo. O cálculo entre a situação anterior e posterior à ação é levado em conta neste julgamento, e é com base nele que se faz o julgamento político da ação.

Longe de querer comparar o personagem dos contos com nosso atual presidente-candidato, a política adotada no governo Lula teve um aspecto prático importante para uma parte muito significativa do eleitorado. Os gastos com a rede de assistencialismo montada pelo governo deixam claro isso. São milhões de brasileiros beneficiados com algum tipo de subsídio importante para sua sobrevivência. É preciso ter em conta aqui que 58,41% (segundo dados de junho divulgados pelo TSE), a maioria do eleitorado brasileiro tem menos que o primeiro grau completo - são mais de 73,5 milhões de eleitores. Soma-se a isso que a maioria também tem baixa renda. Pesquisas qualitativas revelam que, para este eleitor, a política é muitas vezes um mundo onde a moral, presente em seu cotidiano de trabalhador honesto, nunca fez parte, daí ele ter uma percepção muito mais "realista" (ou sem ilusões) e muito menos "romântica" do poder (ou idealista). O eleitor brasileiro tem preocupações muito prementes no seu cotidiano: a sua maior demanda é sobreviver e não julgar moralmente os políticos. Estes políticos, salvo raras exceções, já são considerados de antemão na percepção do eleitor comum como corrompidos e desonestos.

Lula, desde o início de sua campanha no horário gratuito, está evidenciando o aspecto pragmático de sua atuação na Presidência da República. Logo no primeiro programa comparou o preço de um saco de cinco quilos de arroz no final do governo FHC e o atual preço do produto, mostrando que houve uma redução de cerca de 50%. Para o eleitor que necessita mais que qualquer outra coisa sobreviver, vão importar menos os escândalos políticos e muito mais o preço do arroz que caiu. É com base nisso que, acredito, podemos compreender melhor os números das prévias eleitorais e o cálculo feito pelo eleitor. A racionalidade utilizada pelo eleitor é imediata e diz respeito às condições mais básicas da sua subsistência.

Fica mais fácil perceber que o eleitor comum está, sim, comprometido com aquilo que pode ser verificável, ponderado, calculado. Como já dissemos, e é importante frisar, o julgamento moral não carece de cálculo e se baseia de maneira pura nos valores. Mas os ganhos e perdas cotidianos gerados pela política nacional dos últimos quatro anos parecem gerar um saldo positivo no cálculo factual feito até agora pelo eleitor. As pesquisas mostram de forma clara que o eleitor está fazendo um julgamento das ações políticas do presidente e não de seu posicionamento moral. Se o eleitor estivesse ponderando a atitude moral do presidente (direta ou indiretamente) ele dificilmente já não estaria deposto.

Luiz Claudio Lourenço é cientista político e pesquisador Doxa-IUPERJ. luizim@yahoo.com

11.9.06

POLICIER

Deux enquêteurs, la nostalgie portugaise et une écriture tissée de poésie
Les mots bleus de Francisco José Viegas

LES DEUX EAUX DE LA MER
de Francisco José Viegas
Traduit du portugais
par Séverine Rosset

Éditions Carré Jaune/Albin Michel,
416 p., 18 €.

Voici un de ces livres dont on peut dire qu’on ne l’espérait même plus, un de ces livres lestés, mais d’un alourdissement digne et juste, imposant, d’emblée, tout ce qu’il fallait pour que l’on s’attache – à l’auteur, ses manières d’écriture, ses personnages. C’est la récente collection d’Albin Michel qui nous emballe le tout, un joli Carré Jaune pour de nouveaux horizons vers « toutes les littératures policières, européennes surtout », et ces Deux Eaux de la mer, donc, envoûtantes et si fortement portugaises, de bout en bout et de mot en mot – la traduction proposée par Séverine Rosset est limpide et forte.

Il s’agit bien d’une enquête policière – deux corps sur deux plages, deux pays : Rui Pedro Martin assassiné par balles à Finisterra (Galice, Espagne), et Rita Calado Gomes retrouvée sans vie, simple noyade, sur les galets îliens des Açores. Vivants, ces deux morts furent amants. C’est ici qu’apparaissent, comparses doux de l’auteur, les deux enquêteurs dont les silhouettes uniques façonnent pour beaucoup l’attachement à ce roman (1) :

Filipe Castanheira est inspecteur exilé volontaire sur l’île de Sao Miguel, loin de Lisbonne, sa nostalgie, « ce genre de ville où il n’y a pas de place pour les souvenirs de ceux qui ne l’aimeraient pas ». Son ami et collègue, Jaime Ramos, exerce à Porto. Et c’est à ces deux drôles de bonshommes, trentenaires empreints d’une saudade, cette tristesse si locale qu’ils revendiquent à chaque geste ou choix de vie, à chaque dialogue, à chaque approche de leur métier, c’est à ces deux-là qu’échoit la double enquête. « Il y a une mer infinie qui se brise dans le sillage de la morgue, qui s’engouffre par les fenêtres, une mer infinie dans la voix d’une ville, à cette heure, à toutes les heures… » : la force de Francisco José Viegas est d’avoir réussi un livre qui, entre les lignes éparses du roman policier, n’est que lente, extrêmement lente digression poétique.

Ses deux héros n’avancent que par le doute, les yeux ouverts sur les lignes de fuite brumeuses d’un ciel, du tangent d’un bleu de mer vu d’un avion ; doute sur doute dans leur métier, dans leurs amours – et Isabel, qu’aime Filipe, n’est qu’un nom et n’apparaît qu’en tant que femme évaporée, ingrédient parmi d’autres de cette saudade générale mijotée à petit feu. Car Francisco José Viegas fait, de plus, de ses deux inspecteurs, de doux gourmets : cuisine à longueur de pages, cigares et vins fins. Montalban, Le Carré ne sont pas bien loin, mais, sous leurs auspices, cês Deux Eaux de la mer se referment sur la certitude d’avoir rencontré un univers à part, deux héros, une langue tissée d’îles et de ciels, une écriture solitaire : un auteur.

MICHAËLLE PETIT

(1) Premier volet d’une trilogie, à paraître intégralement chez Albin Michel.

In La Croix

2.9.06

Comunicado da Bulhosa sobre as vendas de livros escolares.
«A Bulhosa foi hoje contactada por alguns jornalistas na sequência de uma queixa, cuja origem não nos foi precisada, de estar a impor “listas” de livros escolares aos seus clientes. Esta acusação, que não tem qualquer base nem faz nenhum sentido, só pode decorrer de um mal entendido no que respeita à venda deste tipo de livros nas nossas livrarias.
A Bulhosa, como de resto acontece desde há anos, só aceita encomendas de livros escolares, seja “em lista” ou por unidade, não os disponibilizando directamente nas livrarias, como acontece com os restantes tipos de livros. É nesse sentido que só aceitamos vender livros escolares “em lista”, tenha ela dois títulos ou dez, qualquer que seja a sua composição.
A regra de só aceitarmos encomendas de livros escolares, e não os vendermos a qualquer momento ao balcão, resulta precisamente da grande variedade de livros escolares existente e, consequentemente, das múltiplas possibilidades de listas recomendadas por cada escola, o que impossibilita conservar em stock, de maneira permanente, todos os títulos.
A isto acresce que a maior parte destes livros têm de ser comprados “a firme” pelas próprias livrarias e que não estão por isso, como os restantes, sujeitos a devolução, o que leva a que seja preciso gerir com grande cuidado a relação entre as nossas compras e a procura pelos clientes dos livros em questão.
Neste sentido, a bulhosa não “impõe” qualquer lista de livros escolares, o que redundaria num prejuízo porque reduziria necessariamente o número de clientes: o que faz é só os disponibilizar por encomenda, prestando um serviço de qualidade que possibilita a sua recolha posterior, seja ela de um só livro ou de uma qualquer “lista”, sem perda de tempo, em qualquer um dos nossos balcões.»

11.8.06

Ficar de fora?
Vasco Pulido Valente

Ontem a polícia inglesa impediu um atentado, que teria morto centenas de pessoas, que viajavam inocentemente de Inglaterra para a América. A ideia era fazer explodir em voo um número ainda indeterminado de aviões. Foram presos 21 indivíduos, mas com certeza escaparam alguns. Para começar, é bom perceber que uma operação desta envergadura não se improvisa. Exige um conhecimento técnico avançado, liberdade de movimentos, muito dinheiro e uma extensa rede de cumplicidades. Mais do que isso, precisa para se desenvolver de uma atmosfera favorável. O Ocidente, no caso a Inglaterra, oferece tudo isto aos terroristas. Respeita o seu direito à cidadania, protege a propagação de uma doutrina de intolerância e ódio e não pune, como devia, o incitamento à violência. Não estamos perante vítimas sem defesa de uma "globalização" cruel. Estamos perante gente sofisticada, que o Ocidente educou e deixou crescer.
O fracasso da invasão do Iraque provocou, naturalmente, uma contra-ofensiva xiita. No próprio Iraque, no Irão e no Líbano, essa ofensiva paralisou o Ocidente e forçou Israel a intervir. A farsa das negociações, com a França ou sem a França, presume que a guerra com o Hezbollah pode ser localizada e contida. Não pode. Por um lado, qualquer trégua ou interposição internacional só favorece o Hezbollah, que terá tempo de recuperar e continuará fatalmente a receber armas. E, por outro, o mundo muçulmano não vai ignorar a manifesta fraqueza política e militar da Inglaterra e da América. No Afeganistão os taliban voltaram. A boa-vontade do Paquistão arrefeceu. Há sinais de confluência do terrorismo xiita e do terrorismo sunita. E o ataque, planeado em Londres, mostra até onde o islão se dispõe a ir.
Infelizmente, o homem médio da Europa e mesmo da América não acredita na realidade de um islão agressivo. A tese oficial da "minoria extremista", que a grande e virtuosa maioria muçulmana condena, encoraja a complacência e o desinteresse. Tirando o preço da gasolina, quem se importa com as querelas do Médio Oriente e do Afeganistão ou com o que dizem e não dizem em Hamburgo ou em Londres clérigos furibundos, de turbante e barba? Mas, desta vez, não basta não ver e não ouvir. O Ocidente perdeu a iniciativa e os foguetões do Hezbollah, que chegam a Haifa, também chegam a Inglaterra em forma de bomba. Não há maneira de ficar de fora.
Um mundo enlouquecido
José Miguel Júdice

O mundo está cada vez mais louco, o que não significa - infelizmente - que esteja a ter cada vez mais graça. Os exemplos abundam e muitos deles são bem mais sintomáticos e graves do que o caso que vos trago para leitura de férias. Mas, por vezes, vale a pena usar para reflexão situações menos relevantes, pois desse modo a ilustração desejada passa com mais facilidade.
Somerset Maugham escreveu um dia, provocatoriamente - pois eram tempos de acesa dominância da teoria da luta de classes como explicação para a evolução histórica -, que a grande divisão da humanidade era entre os que tomavam e os que não tomavam banho matinal. Se escrevesse no nosso tempo, provavelmente afirmaria que a grande tensão é entre os fumadores e os não fumadores. Ou melhor, entre fanáticos que transformam o tabaco na razão de todos os males e os que ousam exercer a sua liberdade saboreando um cigarro ou um charuto.
Aflorações deste fanatismo fundamentalista surgem regularmente. As mais recentes são, curiosamente, contraditórias. No famoso e iconoclasta Fringe Festival de Teatro de Edimburgo, uma peça centrada em Winston Churchill teve de ser representada sem o conhecido e icónico charuto, por causa de uma lei que impede que se fume em lugares públicos. Mas, por outro lado, a Comissão Europeia veio afirmar que é "uma discriminação ilegítima, politicamente inaceitável" que empresas recusem empregar quem tenha o hábito ou o gosto de fumar.
Tudo isto me parece supinamente ridículo e disparatado. Não sou fumador; mas, como disse a outro propósito Kennedy ("Ich bin ein Berliner"), eu sinto-me fumador de cada vez que uma lei estúpida impede a natural fruição do que é assumido como um prazer ou, pelo menos, uma decisão individual. Eu sei que a liberdade de cada um deve terminar onde começa a liberdade dos outros; por isso, concordo que se não possa fumar em aviões, por exemplo. Por isso, aceito com naturalidade que em espectáculos teatrais a assistência não deva fumar, comer, ter relações sexuais (ou simulá-las...), beber cerveja, cantar, agredir os vizinhos, berrar.
O absurdo é que todos esses actos, que os espectadores não devem fazer, são praticados - quando o enredo o justifica - pelos actores em cena. Excepto fumar, ficou agora a saber-se. Não se pode fumar em cena, mesmo que assim se destrua toda a coerência artística da peça, a simbologia do personagem, a lógica imanente ao enredo. Para mim, isto é pura e simplesmente censura. E se hoje é o tabaco, amanhã com a mesma lógica pode ser qualquer coisa que desagrade a quem mande. Podemos acabar a aturar uma lei que impeça actores e actrizes de representar com indumentárias reduzidas, dizendo certas palavras, exprimindo ideias ou sentimentos proibidos. E desse modo se destroem séculos de luta pela liberdade da criação artística!
O disparate é ainda maior se trouxermos à colação a outra história, que felizmente - pelo menos por agora - acabou bem. Realmente, não se consegue entender como é possível proibir Mel Smith de interpretar Churchill fumando um charuto e se não permite que seja recusado emprego a quem fume. O argumento subjacente a este tipo de insensatas proibições é a saúde pública (quem fuma terá mais probabilidade de adoecer), a publicidade (se não se autorizar a publicidade do tabaco o consumo diminuirá) e o incómodo causado aos que não fumam.
Estes intenções e argumentos - cuja razoabilidade ou rigor não é aqui o local nem o momento para discutir - podem ser concretizados de formas ponderadas e equilibradas: pela pedagogia das entidades públicas, pelas restrições ou regras limitativas à publicidade, pela criação de espaços reservados para fumadores. O que estou a estigmatizar não é, portanto, a existência de regras que ninguém com sensatez rejeita. Do que se trata é atacar os que pretendem levar tais regras a extremos absurdos e desnecessários, em nome da "political correctness", desse modo se lesando direitos como são o direito à cultura, à verdade histórica e ao emprego. Mas, se o fundamentalismo tiver de triunfar, sempre será possível dizer que é menos lógico e adequado proibir um charuto na peça Allegiance, Winston Churchill and Michael Collins do que seria permitir não contratar um fumador por esse "horrível" motivo.
Mas o que tudo isto tem de mais preocupante é que as sociedades modernas - que legislam de forma tenaz e radical contra o tabaco e incomodam pacíficos fumadores - convivem tranquilamente com a extrema miséria, com as mais abjectas e sanguinárias ditaduras, com a mutilação dos órgãos genitais de mulheres, com chacinas em massa de populações, com doenças endémicas como a malária a que não destinam recursos e que dizimam populações inteiras, com penas degradantes e desumanas como as que ainda se aplicam em certos países muçulmanos, como a pena de morte.
Por isso é que concluo que o mundo está louco. Como uma vez disse o meu saudoso amigo Francisco Lucas Pires, um avião fez uns disparos sobre um quartel e como resposta nacionalizaram a banca. Esta tendência para a insensatez e para o totalitarismo do pensamento único continua a crescer e temo que não fique por aqui. Hoje é o tabaco, amanhã será qualquer outra coisa. E, sempre, serão coisas muito menos merecedoras de intervenção dos Estados e de coragem de punir do que são os exemplos que atrás referi, podendo seguramente apresentar muitos mais.
O que afinal significa tão-somente que a matriz das sociedades modernas passa pela criação de temas tolos que são hipostasiados e servem para simular poder e energia, e também para com isso evitar mostrar poder e energia (e já agora coragem) para ser radical e exigente em relação aos verdadeiros horrores do nosso tempo. Vamos indo assim. Mas vamos em direcção a um abismo.

24.6.06

PRÉMIO DE ROMANCE E NOVELA

ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ESCRITORES


Discurso


Gostaria de agradecer este prémio ao júri que mo concedeu, à Associação Portuguesa de Escritores, que o organiza anualmente, e, claro, às entidades que colaboraram com a APE e o tornam possível.
Já referi antes que nunca pensei recebê-lo e que foi uma surpresa a sua atribuição. Estas palavras podem confundir-se com pura imodéstia disfarçada de desprendimento, mas quem me conhece sabe que são verdadeiras e que a surpresa também o foi. Por isso, a alegria em estar aqui é maior e até mais profunda. As minhas palavras nesta circunstância apenas podem ser de gratidão e de um certo enlevo – e de vaidade, naturalmente, porque somos humanos e devemos viver, ainda que com intensidades diferentes, cada distinção e cada desaire. Distinções e desaires compõem a vida de todos – se bem que, no caso de quem escreve, o desaire deva ser entendido como um livro que não resultou e uma distinção deva ser vista como o reconhecimento pelo trabalho realizado.
Estas designações são sempre subjectivas. Cada um sabe e conhece os caminhos do seu trabalho. Cada um conhece as penumbras e as ilusões que o guiam. Cada um, cada autor, conhece o seu próprio caminho melhor do que ninguém e, por mais que tentemos escrever ou falar sobre o método, as alegrias e as dificuldades do nosso trabalho, há sempre aspectos que não conseguimos traduzir ou descrever. Podemos falar deles, claro, e falar deles com absoluta sinceridade – mas, com alguma probabilidade, não acreditariam inteiramente.
Eu escrevo histórias. De alguma maneira, imagino histórias que me comovem e que gostaria que comovessem os meus leitores. Se há alguma definição, em teoria da literatura, para o género de romance que eu gosto de escrever, acredito que seria essa. E que a frase decisiva seria essa também: “Eu escrevo histórias.” Acho que escrevo histórias porque gosto de ler as histórias dos livros dos autores que aprendi a amar desde a infância e a adolescência. Algumas delas duram mais na memória e, também aí, os factores que levam uma história a permanecer na nossa memória são também subjectivos. Podemos tentar explicá-los, mas há sempre qualquer coisa que sobrevive numa leitura – e que não conseguimos descrever. Por isso, uma das palavras de que mais gosto é “poeira”. A poeira das estradas no meio da floresta. A poeira dos caminhos. A poeira do deserto. A poeira do céu, aquela nuvem que atravessa a geografia de todos os lugares onde estivemos. A poeira, enfim.
Eu escrevo histórias, portanto, e gosto da palavra “poeira”. Tal como gosto da palavra “perturbação”. Da palavra “paisagem”, da palavra “lugar”.
Talvez por isso, por eu gostar de escrever histórias que algum dia me comoveram, não posso falar em nome dos outros nem acho que o trabalho do escritor, seja ele contador de histórias ou não, deva ser realizado em nome de outra coisa senão da alegria de escrever e, por interpostas pessoas, da alegria de ler.
Escrevo histórias porque não acredito num mundo sem história, sem memória e sem perturbação. A história e a memória mostram-nos que vivemos com os outros e que são os outros que justificam todas as narrativas; sem os outros não teríamos ninguém para contar histórias, não teríamos ninguém para ouvir as nossas histórias, ou seja, não teríamos com quem viver. A perturbação, por seu lado, ensina-nos que a pequena verdade de cada um, a pequena verdade dos outros, pode pôr em causa a nossa verdade absoluta, aquela em que acreditamos.
No meu caso, os outros, além dos meus leitores, dos meus filhos, dos meus pais, dos meus amigos mais chegados, os outros são os meus personagens. Comecei este breve discurso agradecendo o prémio. Terei de agradecer também aos meus personagens, aos personagens dos meus livros. Sem eles eu não teria conseguido escrever nem contar histórias, nem ter vivido os momentos dessa estranha e no entanto intensa felicidade que é a de ver que, subitamente, esses personagens já não dependem de mim mas da vida inteira, da vida que vem nos livros. Conheço o inspector Jaime Ramos, o detective de “Longe de Manaus”, há algum tempo. Há cerca de quinze anos que ele vive comigo e que eu conto as suas aventuras. De alguma maneira, como vêem, nem as histórias me pertencem, mas sim aos meus personagens. É verdade que o detective Jaime Ramos só existe porque eu o inventei, ou o criei, ou o escrevi. Mas isso acontece porque ele vive, melhor do que eu, esse mundo de perturbação e de poeira onde situo as minhas histórias. Ele é um homem vulgar e céptico. Talvez um pessimista, até. Tem hábitos vulgares. A sua excepcionalidade, o que para mim se revelou excepcional no seu carácter, foi a sua capacidade de permanecer vulgar, céptico, dedicado, tranquilo, apesar da vida inteira, a sua e a dos outros. Agradeço-lhe ter aceite este papel de personagem dos meus livros. Agradeço aos outros personagens que os habitam: ao inspector açoriano Filipe Castanheira, por exemplo, que não entra neste livro, mas que começou a minha série de histórias policiais. A Daniela e a Helena, de “Longe de Manaus”, por quem me apaixonei. Ao brasileiro de Manaus, Osmar Santos, que me proporcionou muitos momentos de riso. Ao detective Isaltino, a quem admiro a sua modéstia tremenda, de homem humilde. Agradeço à namorada de Jaime Ramos, Rosa, que não me importaria de ter conhecido antes de escrever os seus diálogos. E estou grato, evidentemente, aos lugares que aparecem no livro – o Porto, Trás-os-Montes, o Douro, a Guiné, Cabo Verde, Angola e, naturalmente, o Brasil. Se não existissem esses lugares, não teria podido escrever. Graças a eles viajei bastante.
Mas sobre muitas outras coisas, estou grato à língua que usam os nossos escritores – os nossos, os escritores de língua portuguesa. Este livro tem duas ortografias, a portuguesa e a brasileira, mas serve-se de uma única língua, divertida, dramática, pueril, fantástica, sitiada, brincalhona, empertigada, humilde, e dividida por vários continentes onde já não depende de nós, portugueses, mas de todos os que a falam independentemente de nós – e essa é a sua melhor promessa, a nossa melhor herança. É por ela que falam os nossos mestres, de Luís de Camões e Fernão Mendes Pinto a Machado de Assis, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Cesário Verde ou Fernando Pessoa. Eu acho que devemos venerar os mestres e as suas lições, as que atravessam o tempo e sobrevivem às inclinações do mundo, as que vêm de Fernão Lopes a Rubem Fonseca, de Sá de Miranda a Vergílio Ferreira e José Cardoso Pires. Eles são os mestres da nossa língua e a garantia de que ela existe para lá e para além dos dicionários do presente. Se algum dia a escola tiver dúvidas sobre a nossa língua, eles estão aí. Sem eles não poderíamos falar da nossa língua.
Há também um nome que gostaria de referir aqui, o de Miguel Real, autor de “Em Nome da Terra”, um livro notável que foi finalista, comigo, nesta escolha do júri do Prémio APE. Miguel Real é um autor muito raro e de altíssima qualidade, e o seu livro é uma fantástica narrativa sobre uma parte da História de Portugal. Foi das primeiras pessoas a felicitar-me porque ambos sabemos que eu seria também uma das primeiras pessoas, senão a primeira, a felicitá-lo, como já aconteceu de outras vezes.
Não quero terminar a lista de agradecimentos sem mencionar uma pessoa a quem estou ligado por laços muito mais fortes do que a simples relação, digamos, literária. Falo do meu editor Manuel Alberto Valente. Em vários momentos em que o meu pessimismo ultrapassava o do próprio detective Jaime Ramos, o meu editor ensinou-me que vale a pena insistir, persistir, não dormir às vezes, e sobretudo não ceder ao que não devemos ceder. A sua companhia, ao longo destes últimos quinze anos, foi também preciosa e não podia esquecê-lo agora.
Um prémio agradece-se. Ele honra-nos e provavelmente traz-nos alguma responsabilidade acrescida. Agradeço-o, portanto, e sinto-me honrado. A minha única responsabilidade, no entanto, é apenas para com o meu próximo livro, para com a minha próxima história.

[Francisco José Viegas]

12.6.06

Francisco José Viegas vence Grande Prémio de Romance e Novela da APE
07.06.2006 - 19h02 Lusa

O livro "Longe de Manaus", de Francisco José Viegas, é o vencedor do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores 2005.

Trata-se de um mais importantes prémios literários portugueses, no valor de 15 mil euros, e foi atribuído por maioria por um júri constituído por José Correia Tavares, que presidiu, Liberto Cruz, Luis Mourão, Luiz Fagundes Duarte, Serafina Martins e Teresa Martins Marques, informou a Associação Portuguesa de Escritores (APE).

Segundo a APE, o número de livros admitidos ao concurso (90) foi o maior desde a primeira edição do prémio, há 24 anos.

Dois dos seis membros do júri do Grande Premio de Romance e Novela da APE votaram na obra "A Voz da Terra", de Miguel Real, indicou a instituição.

O prémio é patrocinado pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, Câmara de Grândola, Fundação Gulbenkian, Imprensa-Nacional Casa da Moeda, Instituto Camões e Sociedade Portuguesa de Autores.

Francisco José Viegas é actualmente director da Casa Fernando Pessoa, tendo exercido antes cargos de direcção em jornais e revistas.

Nascido em 1962 em Vila Nova de Foz Côa, viveu na aldeia de Pocinho até aos oito anos, mudando-se então com a família para Chaves, onde fez os estudos secundários. Formado em Letras pela Universidade de Lisboa, Viegas foi professor de Linguística na Universidade de Évora.

Jornalista, escreveu para jornais e revistas como o "Jornal de Notícias", "Diário de Notícias", "O Independente", "Visão", "Ler" e "Grande Reportagem". Actualmente, apresenta com periodicidade semanal programas culturais na rádio e na televisão.

Data de 1983 a sua estreia em livro, na Poesia, com "Olhos de água", a que se seguiram "As imagens", em 1987, o ano em que publicou o seu primeiro romance, "Regresso por um rio". A sua obra poética inclui ainda títulos como "Todas as coisas", de 1988, "O Medo do inverno seguido de poemas irlandeses", de 1994, e "O puro e o impuro", de 2004.
Na ficção, Viegas escreveu "Crime em Ponta Delgada", de 1989, "Morte no Estádio", de 1991, "As duas águas do mar", de 1992, "Um crime na exposição", de 1998, "Lourenço Marques", de 2002, e o agora premiado "Longe de Manaus", de 2005.

São ainda de sua autoria uma peça de teatro, "O segundo marinheiro", de 1988, e, publicado neste mesmo ano, um livro de viagens, "Comboios portugueses".

Várias das suas obras estão traduzidas na Alemanha e em França.

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Francisco José Viegas distinguido com Grande Prémio de Romance e Novela da APE








Francisco José Viegas, galardoado esta quarta-feira com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), é um dos mais jovens escritores a receber esta distinção, atribuída a autores portugueses desde 1982.

Viegas tem 44 anos. Nasceu em 1962 em Vila Nova de Foz Côa, fez os estudos secundários em Chaves, formou-se em Letras na Universidade de Lisboa e desenvolve desde então, a par da escrita, actividades múltiplas de divulgação cultural, na rádio, nos jornais e na televisão.

Hoje, numa primeira reacção ao anúncio do prémio, disse à Lusa ter ficado "surpreendido e ao mesmo tempo contente" com a distinção, que considera "um estímulo".

Viegas estreou-se nas letras em 1983, aos 21 anos, com uma recolha poética a que deu o título de "Olhos de água".

Quatro anos depois, publicou um novo título poético, "As imagens", e lançou a sua primeira ficção, "Regresso por um rio".

"Excelente poeta", na opinião do também poeta e ficcionista Vasco Graça Moura, o anterior vencedor do prémio com o romance "Por detrás da magnólia", Viegas deu já à estampa, 23 anos volvidos sobre a sua estreia, seis livros de poesia e nove de ficção.

Graça Moura, como aliás outros dos autores contactados pela Lusa - casos de Jorge Saramago e Agustina Bessa-Luís - não leu o hoje premiado "Longe de Manaus", mas tem da obra anterior do autor opinião positiva.

São, em seu entender, livros com "um resultado muito bom" e "grande eficácia literária".

Para Lídia Jorge, distinguida com o Grande Prémio em 2002, com o romance "O vento assobiando nas gruas", "Longe de Manaus" é "o melhor livro" de Viegas.

"É - disse à Lusa - um livro estupendo, que tem um enredo policial, mas também uma natureza psicológica e mítica, e que junta dos perspectivas, a portuguesa e a brasileira".

Baptista-Bastos entende ter sido "mais do que merecido" o Prémio atribuído a Viegas, porque "Longe de Manaus" é "um belíssimo romance de um grande escritor da língua portuguesa".

"Escreve - disse o autor de "Cão velho entre flores" - um português admirável, coisa que vai sendo cada vez mais rara nos escritores e nos jornalistas portugueses".

A obra ficcional de Viegas inclui títulos como "Crime em Ponta Delgada", "Morte no estádio", "As duas águas do mar" e "Lourenço Marques", romances assentes em tramas policiais mas não se limitando a um desenvolvimento linear desse "esquema".

Escreveu ainda uma peça de teatro, "O segundo marinheiro", e um livro de viagens, Comboios portugueses".

Actualmente, é o director da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.

O Grande Prémio de Romance e Novela da APE registou na edição deste ano um número recorde de obras concorrentes, 90. O seu valor pecuniário é de 15.000 euros.

Nas anteriores edições foram distinguidos autores como José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, Saramago, Agustina Bessa-Luís, David Mourão Ferreira, Vergílio Ferreira, Mário Cláudio e António Lobo Antunes.

Agência LUSA
2006-06-07 20:32:02

6.6.06

A Sagres é a mais tradicional das cervejas portuguesas, nascida em 1940. Exactamente: durante a Exposição do Mundo Português e as comemorações do Império. Daí que, doravante, a sua história esteja, também, ligada à história do design de bebidas em Portugal e, na verdade, à história da própria cerveja entre nós. Durante anos criou-se a ideia, sem dúvida desmesurada e estranha, de que se tratava de uma cerveja pesada. Erro. A Sagres foi, quase sempre, uma cerveja bem feita, bem preparada e, enfim, razoável. Os seus apreciadores detectavam nela uma simplicidade atraente e natural que os bebedores mais jovens não conseguiram compreender. Cometeram-se algumas maldades contra a Sagres. De alguma maneira, a cerveja evoluiu e abriu mais o paladar e a sua cor. Na boca reconhece-se a suavidade do malte, um tom seco, e a presença do lúpulo. Tem algum corpo, reflexos dourados, e um tom amargo que se solta do último suspiro do bebedor; a espuma é muito aberta, o que é uma pena porque muitas vezes se perde – mas o bom apreciador sabe como obter uma espuma correcta e suculenta. Sedosa, textura bastante aceitável, nada que lembre uma cerveja aguada e sensaborona, própria para almas desinteressantes.


+MARCA: Sagres
Origem: Portugal
Álcool: 5,1%
Avaliação: ***

O mundo das cervejas pretas está a mudar em Portugal. Em primeiro lugar, uma parte dos bebedores de cerveja começa a distinguir aquilo que é uma stout de várias coisas como uma dunkel ou apenas uma vaga imitação escura de outras cervejas de tom mais marcado. O apetite pelas cervejas escuras vai aumentando à medida que a qualidade dos bebedores aumenta; ou seja, aumenta o seu interesse pelas boas cervejas que não são, apenas, refrescos com alguma intensidade alcoólica ou amargor de lúpulo. A Super Bock preta apresenta-se como uma stout, e tem razões para o fazer – a essencial tem a ver com a sua densidade, e nisso é a melhor das pretas portuguesas.
Trata-se de uma boa tentativa de fazer uma stout sem excesso de caramelo e com um leve tom de chocolate em dose aperfeiçoada; tem um tom de fruto e de licor inesperado, e uma complexidade que se revela num sabor duradouro. Harmonia entre a carbonatação moderada e a suavidade proporcionada pela fermentação. Com maior densidade, o seu aroma seria (ainda mais) recompensado e ficaria mais amarga. A espuma duradoura é um presente para os bons bebedores que apreciam aquele momento em que a cerveja cai no copo e se despede para sempre da letargia em que nos aguardou – e um prémio para a persistência.

+MARCA: Super Bock Stout
Origem: Portugal
Álcool: 5%
Avaliação: ****
A minha peregrinação em busca da ruiva ideal passa, necessariamente, pela Super Bock Abadia, que foi um sucesso de mercado, tal como a sua rival directa, a Sagres Bohemia. Eu aprecio este tipo de cervejas, onde a coloração se obtém a partir de maltes trabalhados e intensos. O resultado é uma cerveja com certo tom de caramelo, de reflexos alaranjados e vagamente amargos. A Abadia não tem o amargor de outras cervejas semelhantes; pelo contrário, é suave e muito ao gosto popular, o que nem sempre é bom, embora garanta presença e acabe por tornar os seus bebedores em cidadãos mais exigentes. Bem vistas as coisas, a Abadia regista pouca intensidade para uma ale, que poderia ser bem mais “amanteigada” e com corpo mais denso. Aquele leve piquinho de citrino acaba por se transformar em sabor de frutos maduros, o que lhe dá um certo ar exótico. Mantém uma das características da Super Bock no andamento lager – a frescura. Já quanto à sua espuma, convém agitar o copo para que ela não se perca. Ao volteá-la descobre-se uma respiração folgada e intensa (atenção aos 6,4% de álcool), muito adequada a cervejas deste tipo, que não pretendem apenas servir de refresco ou de antídoto contra o calor do Verão, mas também transmitir um sabor especial, neste caso ligeiramente adocicado e frutado.

+MARCA: Super Bock Abadia
Origem: Portugal
Álcool: 6,4%
Avaliação: ***
Aprecio nas cervejas escuras o seu apelo à contenção, o seu peso e a suavidade. Não são coisas contraditórias. Ao contrário das cervejas claras, lagers clássicas e pilseners de eleição, as cervejas escuras ou mais escuras (stouts, ales, dunkels, de ruivas a pretas) chamam por nós naquele momento em que a boca se desfaz do líquido e o deixa seguir caminho; ou seja, a cerveja vai, parte, mas nós ficamos cá do alto, vigiando a descida esófago abaixo, se é que ela desce alguma vez pelo esófago – coisa que, por elegância, acredito que não fará. A designação de cerveja preta quase nunca é muito precisa, pois abarca uma série de identidade e de categorias muito distintas. A Tagus, que é uma boa lager, lançou agora a Magna, que se junta às outras cervejas escuras portuguesas. Recomendo que se proceda à sua prova: em primeiro lugar, não se trata de uma stout, antes aparece como uma dunkel de estilo alemão, quase regulamentar e bávaro, embora com um tom mais doce ou caramelizado. Olhada à luz, faz-nos tremer ligeiramente: o copo, transparente, revela um tom rubi profundo e nada envergonhado. E, se é mediana no seu aroma (nada de profundo, de facto), o paladar compensa bastante, com uma evocação simpática de sabores em suspensão, volteando e rodopiando naquele final de boca acentuado. Só o facto de não trazer impresso «stout» no rótulo é já uma coisa honesta. De facto, é uma boa dunkel portuguesa.

+MARCA: Magna
Origem: Portugal
Álcool: 5%
Avaliação: ***
Eu não vejo grande inconveniente em fazer-se cerveja com ananás, abóbora, rabanete, gasolina de avião, álcool etílico ou com ginja. O importante é haver quem a beba; não me apanharão em campanhas de rua a exigir a pureza absoluta da cerveja ou de qualquer outra coisa. Em África já me ofereceram vinho branco com Coca Cola e eu recusei – mas havia bastante gente à minha volta a segurar na mão o copo com a mistura. De volta à pátria real, descubro uma cerveja com aroma de limão e uma campanha publicitária que fala da sua leveza e dimensão angelical. Estranhei que não a tivessem feito antes – à mistura, porque a publicidade nem era má. Nada disso me incomoda, nem acho criminoso desde que não me obriguem a bebê-la em doses normais. Basta cheirá-la. Há quem invoque o hábito mexicano de tingir a claridade radical das suas cervejas com umas gotas de limão ou, mesmo, de nela mergulhar um quarto de lima para lhe transformar o sabor, tornando-a ligeiramente doce; nem isso me parece uma exclusiva mexicanização: na Europa há cervejas com um leve toque cítrico que não desconhecem de todo o caminho do pódio – pelo contrário, são muito agradáveis. Não são aquela cerveja. Não. Mas não erguerei o cadafalso para penalizar os seus autores. Ora, por falar em campanhas publicitárias de cerveja em Portugal há uma que gostaria de recordar; diz: «É boa.» Voltar à pátria a espaços tem destas vantagens: eu já conhecia a cerveja mas tinha-me passado a campanha. Não é despropositada – a Tagus é uma cerveja muito apreciável, claramente lager, seca e com um tom colorido bastante apetitoso, cerealífero. Herdeira da tradição das pequenas indústrias locais (que produziram em Portugal marcas como a Marina, Clock, Cergal ou Topázio), é necessário saber aprender a beber a Tagus: não é vulgar nem excessivamente gaseificada, como acho que pede o gosto português; tem um aroma quase perfeito e um sabor que ronda o limão, frutos frescos e um final de noz. É boa. Quer dizer: a campanha não mente. É boa e pronto. Malte puro, água pura, lúpulo – com isso se faz uma cerveja.

+MARCA: Tagus
Origem: Portugal
Álcool: 4,5%
Avaliação: ***
Nas cervejas, como em muitas outras coisas da nossa vida, há obsessões e hábitos adquiridos com a prática. A Super Bock é um dos selos da identidade do malte & lúpulo português – e, convém esclarecer, não tem nada a ver com a designação bock, que diz respeito a uma cerveja de sabor intenso, de teor alcoólico mais elevado (chega aos 16 e, no caso das Dopplebock, aos 18%), ligeiramente mais doce, originária de Einbeck (Baixa Saxónia) e que depois adquiriu diferentes significados – todos eles relacionados com a “qualidade do fabrico”. Durante muitos anos, o principal argumento do bebedor de cerveja em favor da Super Bock tinha a ver com a sua leveza de carácter. Era um ponto a seu favor, admito: transparência mais admirável no copo, uma espuma aceitável (ainda que sem muita densidade) que protegia o borbulhar, cor mais apetitosa em meses de canícula. Na verdade, era a lager portuguesa mais fácil de beber. Essa característica não se alterou muito: a Super Bock mantém um tom de frescura, ligeiramente afrutado e que tem vindo a melhorar. Na boca, começa por ter um vigor intenso que depois passa a amargo. Os seus apreciadores detectam esse final muito equilibrado que não lhe retira peso como uma cerveja que cumpre a sua função – dessedentar, refrescar, ser uma pale lager de referência, seca de paladar e limpa quando vista diante da luz. Há cervejas que têm apenas essa característica e não vem daí mal ao mundo.


+ MARCA: Super Bock

Origem: Portugal
Álcool: 5,6%
Avaliação: ***

A cerveja brasileira tem os seus admiradores pelo mundo fora – e os portugueses aceitam, de bom grado e com santa ingenuidade, que se trata, em geral, de uma cerveja superlativa. Na verdade, há casos. Mas convém relembrar que uma cerveja é o modo como ela é construída e a circunstância em que é bebida. Portanto, num cenário idílico em que as poeiras dos trópicos transformam o nosso carácter e nos conferem uma certa dose de perturbação dos sentidos, até uma Antárctica pode parecer uma boa cerveja. Mas não é. Ora, ao contrário do que se pensa, é cada vez mais difícil fabricar más cervejas. Depois de passar dois anos a escrever sobre o assunto, semanalmente, raramente encontrei más cervejas – em todo o mundo. A Sagres, que lançou uma razoável cerveja ruiva há um ano (seguida pela Super Bock, que lançou a Abadia), acaba de disparar para o mercado com a Sagres Chopp, tentando vender a imagem de uma «cerveja brasileira», leve e suave. Não conseguiu. Não tem espessura de «chopp» (que só se obtém verdadeiramente, em todo o seu esplendor, em barril), não tem a sua gloriosa espuma, não tem o seu sabor de coração frio. O rótulo é feio e desagradável, de design cavernícola – e a “carica” nem a marca leva impressa. Aroma, quase nenhum; sabor, amargo demais mas sem personalidade. Experimentei seis garrafas em copos diferentes e foi sempre desilusão. Não tem sabor, não é – ao contrário do que a sua publicidade afirma – leve e possui uma densidade que até na cor se manifesta. Um falhanço.

+MARCA: Sagres Chopp
Origem: Portugal
Álcool: 5%
Avaliação: *
Regresso à pátria depois de uma viagem pelo sul do mundo, e encontro-a cheia de novidades; não me refiro ao futebol, à política ou à meteorologia. Falo da cerveja. Tinham-me já escapado a viseense Tagus Magna, uma dunkel que não me arrependo de gabar, e a madeirense Coral Tónica, uma aproximação ligeira à dunkel. Mas eu não queria que me fugisse a Bohemia, a nova experiência da Sagres. O leitor já sabe que essas cervejas avermelhadas me caem no goto. Aliás, caem bem sobretudo no estômago (já aqui mencionei a Murphy’s Red), são ligeiramente digestivas, afrutadas e, quando servidas de acordo com as regras, a sua espuma flutua como os pássaros num poema de Yeats. A imagem é exagerada, mas é para que o leitor compreenda. É preciso dizer, antes de mais, que não se deve beber uma red do mesmo modo como se bebe uma lager simples. Há horas para tudo. Com certeza, a Bohemia não é a cerveja indicada para refeições substanciais, pois o seu açúcar pode confundir-nos o paladar – o aroma é intenso, solta-se em vagas que nos transportam até outras latitudes. Deve beber-se com concentração e desprendimento. A Bohemia cumpre as indicações (faltando-lhe aquele tom de manteiga que a fecharia mais um pouco) e seria uma pena que passasse despercebida; devemos felicitá-la pela cor e pelo aroma, que tem um final muito apreciável, que evoca maçã e frutos em maturação. Ao servi-la, atenção!, provoque-lhe uma espuma substancial. E já sabeis, leitores, qual é a minha divisa nessas circunstâncias: «Vinde a mim, ruivas!» Já é obsessão.

+MARCA: Sagres Bohemia
Origem: Portugal
Álcool: 5,6%
Avaliação: **
Para festejar o início da produção na Cervejaria da Trindade, apareceu a Sagres Bohemia 1835, uma variante mínima da Sagres Bohemia anterior. Na verdade, trata-se de uma correcção da nova marca, com um ligeiro toque de fruto no seu carácter – mais aveludada, menos amarga no seu final de boca, e mais intensa no aroma. É uma homenagem ao interessante mito dos bons frades que amavam a cerveja e a fabricavam para prazer dos homens e glória do Divino. Não me parece mal. Se fizerem a experiência, num copo adequado, a Bohemia 1835 produz uma espuma mais densa do que Bohemia normal, o que leva a pensar que é uma pena tratar-se apenas de uma série limitada. Há uns tons (mas isso depende da imaginação do provador) de cereja e frutos maduros, muito mais indicados para uma cerveja deste género – e que a afasta definitivamente do gosto popular (o que é bom), dando-lhe notas de requinte e de exotismo, conferindo-lhe densidade e tornando-a mais apetitosa. Por instantes, num final de Primavera, pode mesmo parecer uma cerveja de bar, bebida ao balcão em copo de pint (a meu ver mais adequado, para esta Bohemia 1835, do que o formato belga) uma vez que não precisa tanto de respirar nem de correr o risco de oxidar. Pelo contrário: é uma cerveja que deve beber-se em goles cheios, fustigando as papilas e mostrando-lhes que é possível produzir uma ruiva aceitável, muito aceitável, com as cores nacionais. O bebedor não sabe como se consegue isso, mas dá-se conta de que há uma melhoria. E isso é bastante. E já é muito.

+ MARCA:
Sagres Bohemia 1835
Origem: Portugal
Álcool: 5%

Avaliação: ***
Várias vezes me têm perguntado quais são as melhores cervejas portuguesas – é um risco necessário e natural. Por sorte, mais do que por aquela natural sapiência que um cronista devia ter (e não tem), tenho podido evitar respostas. Tenho a minha lista. No topo, silenciosas, seguem as minhas três de eleição. De duas delas já escrevi há tempos, ambas lager – uma de travo agudíssimo, pilsener lusitana, leve e ligeira, como uma daquelas canções cujo ritmo não engana ninguém, é uma cerveja fácil (lembra muito aquela canção Esquece Tudo o que te Disse). A outra, lager de lei, loira intensa, perfumada de lúpulo e nada mais, com o tom amargo de quem não aparece para enganar incautos ou iniciados (e que lembra o grande hit de Tony de Matos, «o vendaval passou/ nada mais resta…»). Desta vez, porém, menciono outra lager muito apropriada, a Coral, madeirense (relembro que apareceu recentemente no mercado a Coral Tónica, que é a aventura funchalense no domínio das stout). Bebê-la a copo ou em garrafa traduz uma distinção apreciável, sobretudo se o barman sabe tirar correctamente a cerveja. No continente, para pena minha, não se encontra em barril – mas as garrafas estão por aí, e não desmerecem a tradição de uma cerveja leve, de baixíssima fermentação, refrescante e de «coração frio» (à semelhança de muitas brasileiras, por exemplo – refiro-me à cerveja), mas que não se envergonha do seu piquinho que eu atribuo ao desejo de agradar ao gosto médio nacional. E aquele tom de frescura que acalma as papilas não é um acaso.

+MARCA: Coral
Origem: Portugal / Madeira
Álcool: 5,6%
Avaliação: **
Havia um tempo em que as cervejas eram todas iguais. Minto: em que nós, inocentes, julgávamos que as cervejas eram todas iguais. Eu recordo coisas simples, como essa. O gosto do primeiro golo de cerveja – o da primeira aventura como adolescentes. Era Verão. Tínhamos quinze anos. Dezasseis. Havia um brilho imbecil nas tardes de Verão, e um reflexo alaranjado no entardecer; nada que não venha na literatura. Romances de aventuras, policiais, séries de televisão, primeiros romances a sério, choupos à beira do rio, creme Nívea na praia, areal a perder de vista, pinhais, dunas. Posso mencionar o primeiro beijo? Posso. Essas coisas têm mais probabilidade de terem acontecido durante o Verão. Tal como a primeira cerveja. Nesse tempo havia marcas como Clock, Cergal, Marina, Cuca. Hoje, há mais marcas. Mas essas eram as dos Verões de há trinta anos, vinte anos. Seriam melhores do que hoje? Não sei. Não havia essas preocupações. Era apenas uma cerveja, uma transgressão. Outro dia, no supermercado, revi a Cergal. Vi-a em latas, verdinhas, com o complemento «Holland style» ou «Holland beer». Comprei duas latas, tal como já comprei, em alfarrabistas, livros escolares de há trinta anos – para rever um tempo. Lager clara, fria, sem ademanes. Procurei um sabor antigo mas não soube reconhecê-lo. Leve e ligeira, lembrou-me apenas que o tempo passava. Tinha um sabor simpático de lúpulo suave, trabalhado com cuidado. Era o nome da Cergal, com aquele rasto de cereal flutuante, filtrado com esmero (ah, que diferença em relação à antiga Cergal), um raio de luz na minha memória traiçoeira.

+ MARCA: Cergal
Origem: Portugal

Álcool: 4,5%

Avaliação: *

5.6.06

Em que país estava a ministra da Educação?
Beatriz Pacheco Pereira
[PÚBLICO DE 5.06.2006]

O passado é negro, mas a culpa não é, seguramente, dos professores. Os que resistiram a todos estes erros da responsabilidade do Ministério que tutela são quase heróis. Que mereciam ser estimados e bem pagos para permanecer na profissão.

Sucedem-se os ataques violentíssimos aos professores como únicos responsáveis pelo desaire do ensino público (note-se, público, não privado, como se eles não fossem os mesmos...).
Caso é para perguntar à sra. ministra onde andava e que informação tinha sobre o que se passava, de há trinta anos para cá, no Ministério que agora tutela. Ninguém chega a ministro sem saber o que está para trás. Mas nada se nota. Se não está bem informada do passado, aqui ficam alguns dados que explicam bem como se pode ter chegado aos descalabro que apregoa.
Pergunta-se pois, sra. ministra, onde andava quando o seu Ministério...
1- ...aprovou cursos de professores primários em que se proibiam as cópias e a memorização da tabuada (Institutos Piaget e quejandos...)
2- ...deixou professores primários dar aulas em aldeias remotas em escolas sem água, sem luz e com alojamentos dignos de eremitas? E todos ou outros em verdadeiro trabalho missionário por esse país fora?
3- ...deixou que o concurso de professores enviasse, anos e anos a fio, pessoas com uma qualificação de nível superior (as que devia mais estimar) pelo país inteiro, à custa de suas famílias destroçadas e dos filhos que não podiam ter ou ter consigo?
4- ...ignorou ostensivamente que eles pagavam os transportes do seu bolso, viajando 100-120 quilómetros até, sempre sem qualquer ajuda de custo, diminuindo dramaticamente os que lhes sobrava no fim do mês? Não seria isto imoral e desumano?
5- ...teve inúmeros ministros que se sucediam a ritmo alucinante, cada um puxando pelos seus galões de docentes universitários, vomitando reformas continuamente e sempre sem ter em conta a sua adequação, implementação e financiamento?
6- ...deixou que a dotação financeira de uma escola secundária fossse absolutamente ridícula durante décadas, mal dando para pagar a água, luz, os edifícios escolares se degradassem de tal modo que nenhum professor se aventurava nas instalações sanitárias dos alunos, e não havia recintos desportivos ou actividades extra-escolares?
7- ...permitiu horários dos alunos que alcançam as 8-9 horas por dia, uma carga insuportável para qualquer pessoa? (tive uma turma destas este ano lectivo, e eu dava a 9º aula do dia...)
8- ...não se preocupou com o tempo de estudo dos alunos. Quantas horas sobram semanalmente para os alunos estudarem? Na escola, onde se pode estudar se não há salas de estudo organizadas e, em muitas, as bibliotecas, se funcionam, não têm espaço para tal? Será em casa, à noite, com pais que se demitem cada vez mais da sua função de vigilantes e educadores?
9- ...esvaziou o quadro das escolas de funcionários, deixando que sejam poucos, mal preparados e pouco mais do que empregados de limpeza?
10- ...obrigou os professores (especialistas nas suas matérias, não se esqueçam) a passar muitas horas extra-horário, a fazer tarefas administrativas que antes competiam aos funcionários não-docentes, ou então em reuniões absolutamente improdutivas mas obrigatórias? Não sabia que os professores já passavam muitas noites e fins de semana a preparar aulas e material lectivo?
11- ...permitiu que o Sistema Disciplinar se esvaziasse, em nome da retenção quase obsessiva de alunos dentro de portas e do aumento da população discente nas escolas, minando sistematicamente a autoridade dos professores? Este ano, sei que alunos com comportamentos irregulares, e até criminosos, com 20 ou mais participações disciplinares, não foram expulsos nem submetidos a nenhum programa de reabilitação por especialistas credenciados... Porque reduziu o Ministério o poder de sanção dos professores?
12- ...só deu atenção ao número de computadores por escola e ao acesso à Internet mas não permitiu aos alunos compreender o poder dos media? Afinal os alunos passam o resto do escasso tempo diário a ver uma televisão que lhes mostra só publicidade de telemóveis, futebol, escândalos e anedotas... Os valores dos jovens hoje são ensinados pelo matraquear de televisões mal regulamentadas. Porque não age o Ministério sobre elas também? Porque será que abdicou da sua função reguladora deixando que canais abertos dêem pornografia encapotada, publicidade que ofende os direitos humanos e dos animais, programas impróprios a horas do jantar? Porque nunca interagiu o Ministério da Educação com o da Cultura?
13- ...permitiu que se extinguissem os Exames por puras razões estatísticas? Ninguém no Ministério sabia que era preciso separar os que sabiam dos que não sabiam, e desde o início da escolaridade? Porque facilitou sempre a passagem dos que tinham níveis negativos?
14- ...deixou que as escolas tivessem apenas um psicólogo (quando o tinham, claro) que além de fazer sozinho a orientação vocacional, não tinha tempo para lidar com os casos mais graves que surgiam nos alunos? Porque, entre eles, não havia futuros desajustados da sociedade, nem doentes mentais, nem vítimas de abuso sexual, nem de violência doméstica, nem problemas de droga. Ou havia?
15- ...não se deu conta da crescente feminização das nossas escolas? Por que razão isso aconteceu, é simples - ser professor era (é) das tarefas mais exigentes, mal pagas, de carreira mais difícil e incerta. Portanto, óptima para o lado mais fraco da nossa sociedade. Depois, com algum malabarismo, ainda deixava algum tempo livre para as tarefas domésticas. Os homens, simplesmente não se sujeitavam a isto e partiam para outras profissões, mesmo dentro da função pública como para repartições e organismos de gestão do Ministério da Educação. Esta acomodação a padrões de sociedade retrógrados nunca incomodou o Ministério? (A propósito, os professores-homens estão a voltar ao ensino, não porque sintam vocação, mas porque há falta de empregos...)
Podia continuar estas interrogaçãoes que apontam para coisas que a sra. ministra, estranhamente, prefere não falar. O passado é negro, concordo, as estatísticas não se podem ignorar, mas a culpa não é, seguramente, dos professores. Porque os que resistiram a todos estes erros da responsabilidade do Ministério que tutela são quase heróis. Que mereciam ser estimados e bem pagos para permanecer na profissão. Sabe a sra. ministra porque é que, em Inglaterra, já ninguém quer ser professor e andam à procura deles em Espanha e até em Portugal? Professora do ensino secundário (bpachecop@hotmail.com)

17.5.06

PAULO JOSÉ MIRANDA SOBRE SÃO PAULO

Segunda-feira
(relato de um recolher obrigatório informal ou o dia em que a cidade que não pára, PAROU, devido aos ataques do PCC – Primeiro Comando da Capital)

Após um fim de semana de violentos ataques a esquadras da polícia, dos bombeiros, autocarros, metro e civis, revoltas em inúmeras prisões, a chegada da segunda-feira e a necessidade dos cidadãos terem de ir trabalhar, levou a que este dia São Paulo tenha assistido ao pior dia da sua história. Nunca os cidadãos desta cidade se tinham sentido reféns do terror, do medo como nesta segunda-feira. De madrugada inúmeros autocarros e carros foram incendiados, agências bancárias destruídas e havia manchas de sangue espalhadas por muitas partes da cidade. Quando os cidadãos mais pobres se dirigem à paragens de autocarros para irem trabalhar deparam-se com a inexistência de circulação de autocarros. Até ao momento tinham sido destruídos mais de 50 e as empresas não arriscaram enviar mais veículos para as ruas. Devido a isto, o rodízio municipal foi anulado (sistema de circulação de viaturas, por número de matrícula), permitindo que circulasse quem quisesse, independentemente da matrícula do carro. Depois do almoço, numa entrevista na TV, Marcola, chefe do PCC, diz ao director do DEIC, da polícia, que vai matá-lo, que ele pode entrar na sua delegacia para matá-lo, mas este não pode entrar na prisão e fazer-lhe o mesmo. A tensão atinge então a sua máxima amplitude. Ninguém se sente seguro. Os estabelecimentos comerciais fecham suas portas às 3 e meia da tarde. Os serviços públicos também param; os funcionários são enviados para casa. O metro, que de madrugada tinha sido alvo de explosões, deixa de trabalhar. Neste recolher obrigatório informal a casa, São Paulo assiste ao record máximo de fila de carros: 212 km de fila de carros, às 4 da tarde. 212! O método usado pelo PCC nos seus ataques é, fundamentalmente, através de motoqueiros; muitos deles são devedores de dívidas de droga, e se não fizerem esses ataques, morrem. Entre morrer às mãos dos traficantes ou às balas dos policiais, preferem a última hipótese, pois ela ainda pode representar uma esperança, unto do PCC. Outros ataques, são ataques mais cirúrgicos: um dos comandos se aproxima de um policial em particular e dispara a arma na sua nuca, ou nos seus familiares. Em frente a uma padaria, na zona sul da cidade, um policial, com sua mulher ao lado, ajoelhou-se diante de dois comandos e foi executado. Os bandidos comunicam as suas instruções por telemóvel; a maioria vem de dentro dos presídios. Um telemóvel mata mais que um revólver ou que uma AK.

Às 7 da tarde as ruas estão desertas e, a essa mesma hora, o comandante da polícia militar de São Paulo, Sancler, dá uma conferência de imprensa onde acusa os órgãos de comunicação social de exagerar o que estava a acontecer; acusa também os comerciantes de se precipitarem a fechar os estabelecimentos mais cedo e acusa ainda os responsáveis pelas escolas e faculdades de terem tomado a decisão de enviar os alunos para casa e fecharem as portas. Às 9 da noite a cidade está mergulhada num escuro inimaginável. Um escuro que a cidade de São Paulo desconhecia que tinha dentro dela. Na zona norte da cidade, um condomínio onde vivem vários familiares de policiais começa a ser atacados. A troca de tiros continua, as mortes aumentam Na zona oeste, onde vivo, um homem é baleado neste mesmo instante, não se sabe se policia ou bandido. Numa das zonas mais ricas da cidade, aqui perto, dois bandidos são baleados. São 185 ataques até ao momento. Até ao fim, até ao acordo que o Governo de São Paulo não admite ter feito, serão 200 ataques 200 ataque, mais de 60 autocarros queimados, 52 criminosos mortos, 43 policiais e civis mortos. Os canais de TV mantêm helicópteros a sobrevoar a cidade toda noite, em comunicação com comandantes da polícia, vamos assistindo à noite, a uma imensa noite desconhecida. Um homem, ao fim do dia, de regresso a casa, dizia “estou com medo dessa bandidagem; ninguém sabe quem é quem, essa é que é a verdade”. Num programa de debate, num dos canais, o presidente dos juízes de São Paulo diz que a legislação deve mudar, deve ser mais severa; é a favor da pena de morte. “A nossa democracia não é mais desenvolvida do que a dos EUA.” Por seu lado, o responsável máximo pela investigação policial, Rebouças, diz que “quando o bandido sente que o governo é fraco, fica forte” Oiço o apresentador do programa dizer: FORAM CONVIDADOS PARA O PROGRAMA O SECRETÁRIO DA DEFESA DO GOVERNO DE SÃO PAULO, O GOVERNADOR DE SÃO PAULO E A RESPOSTA FOI “NÃO VAMOS ENVIAR NINGUÉM!” Perante isto, não sei o que dizer disto, sinceramente. O apresentador, profundamente comovido e indignado, diz: ISTO NÃO É CRIME ORGANIZADO É QUADRILHA ORGANIZADA. Julgo excelente esta contra-posição; esta é a diferença entre as cidades de Istambul ou de Hong Kong e a de São Paulo; quadrilha organizada não poderia funcionar num estado organizado, embora crime organizado exista em estados organizados; quadrilha organizada só pode funcionar em estados desorganizados (não identificar estado organizado com país desenvolvido). Não defendo o crime organizado, mas, apesar de tudo ele é um mal menor, menor do que o das quadrilhas organizadas. O crime organizado não afecta o cidadão comum, nem os policiais. O crime organizado é organizado. “Nós temos as leis mais brandas do mundo” , acrescenta o Juiz..Termino com um curioso episódio. No dia das mães, dia 14 de Maio, no fim de semana dos motins, foram liberados 2000 presidiários para visitarem suas mães. Sei que parece piada, mas é verdade. As prisões estão caóticas, a cidade sitiada e 2000 presos vão festejar este dia especial com as mães. Assim que saíram dos estabelecimentos prisionais onde se encontravam, foram directamente ao PCC buscar armas para poderem combater. Dos 39 bandidos mortos, no fim de semana, 15 eram parte desses visitantes de mães. Por conseguinte, 15 só no domingo. Perante tudo isto, entre comedia e tragédia, o problema é que os pensamentos de direita e de esquerda mais radicais começam a emergir, parecendo fazer sentido a que os escuta. Perante tudo isto, entre comedia e tragédia, é muito difícil pensar contrariá-los, quer á direita, quer à esquerda. A segunda-feira de São Paulo.

NOTA: PCC começou na prisão como time de futebol e chamava-se Comando da Capital. Mais tarde, passaram a ser uma organização de defesa dos direitos dos presos e das usas famílias. Por fim, já enquanto quadrilha, adicionaram o Primeiro, tornando-se o PCC.

Paulo José Miranda

São Paulo, 16 de Maio de 2006