15.12.05

O PEQUENO ESCÂNDALO (SOBRE O LIVRO DE FILOMENA MÓNICA). Parece que, nos meios políticos, académicos, suburbanos e paraliterários, vai um burburinho surdo e indignado. Quando esta gente se indigna, eu quero saber porquê. Interessa-me a hipocrisia.
Desta vez há um livro, o de Maria Filomena Mónica, intitulado “Bilhete de Identidade” (edição Alêtheia). Ora, o que conta o livro? Nada de mais, nada que não suspeitássemos e nada que envergonhe o género humano. São as suas memórias, coisa que acontece as pessoas decentes terem.
Ao contrário de outros países em que as pessoas escrevem as memórias para que os seus contemporâneos as leiam (quem quiser, obviamente), Portugal escandaliza-se frequentemente com o facto. As pessoas contam nas suas memórias apenas o que lhes interessa, obviamente. Espera-se que um estadista revele telefonemas, mistérios da política, segredos de bastidores ou, até, pensamentos profundos – se lhe calha tê-los. Mas que a coisa não ande longe da verdade. Filomena Mónica não é uma estadista. É uma socióloga, uma académica que escreveu vários livros e artigos. Lamentavelmente para a pequena intelligentsia, Filomena Mónica escreve bem, escreve claramente, estudou em Oxford e tem a coragem de dizer o que pensa, mesmo quando não pensa grande coisa. Graças a ela pudemos, em várias ocasiões, ser confrontados com a miserável mediocridade do sistema de ensino que há anos era inatacável. Nunca lhe perdoaram.
As suas memórias não são o retrato maneirista de uma personagem em busca de glória. Se assim fosse, o livro não revelaria ingenuidades de adolescência, fragilidades da idade adulta e perdições comuns ao género humano. O livro seria, apenas, muito bem comportado. Acontece que, oh Portugal de plástico e de esferovite, o livro diz nomes, conta coisas, refere datas. Em Portugal não se dizem nomes (usam-se iniciais ou deixa-se a suspeita), não se contam muitas coisas nem se referem datas. Não se incomodam as pessoas, tratando-as pelo seu nome, chamando António ao António e tratando-se Genoveva por Genoveva. Não. Em Portugal limitamo-nos a sugerir infâmias anónimas e baixarias de “alguém”.
Maria Filomena Mónica, por absoluta e sincera ingenuidade, disse os nomes de pessoas que conheceu, com quem viveu, que a conheceram. As virgens do jornalismo, da moral familiar e da academia acham isto indigno. Não porque Maria Filomena Mónica lhes aponte indignidades – no livro as pessoas são naturais, humaníssimas e simpáticas. Mas porque ela abriu as portas do armário onde estão reunidos anos e anos de esqueletos e de aprendizagens. E de indignidades, sim, admito. E de segredos que geralmente não se confessam. Ora, acontece que as pessoas acham que nunca são hipócritas nem indignas. Acham que são perfeitas, impolutas, intocáveis e indiscutíveis em absoluto. Acontece que não são. Que não somos. As pessoas são indiscutíveis para lá de certos limites, sim, definidos pelo costume e até pela lei. Mas o retrato de conjunto oferecido por Maria Filomena Mónica não ultrapassa esse limite. Não reavaliaremos a obra de nenhum autor à luz dessas revelações, a menos que sejamos patetas.
O que o livro de Filomena Mónica retrata é um pedaço da sua vida: a menina de Cascais (sim, a “beta” de Cascais – qual é o mal?) e a adolescente que lê Evelyn Waugh enquanto bebe conhaque num colégio londrino. A mulher que comete adultério durante o fascismo e que fica com mais do que um grão na asa ao jantar com um famoso professor de Oxford. A que deambula pelos corredores do curso de Filosofia e comenta a beleza dos rapazes. A que se desilude com a política e com a vida doméstica. O que ficámos a saber, com o seu livro, é que aquela gente até tinha um certo grau de humanidade, de palermice e de generosidade. E é isso que indigna tantos sacerdotes. Ser humano incomoda muita gente.

28.11.05

GAJAS DO MEU PAÍS. No meu país de senadores, medalhados e reformados (ou com subvenções vitalícias) podem passar-se semanas sem que haja qualquer coisa de substancial a acrescentar à pequena modorra. Mas o problema não é nosso - é geral. Uma onda de covardia e de senilidade, ao mesmo tempo, toma conta da Europa. Esta semana, prefiro deixar a política entregue aos seus. Distingo, por isso, uma mulher corajosa. Não foi medalhada pelo sr. presidente da República e duvido que algum dia o fosse, a avaliar pelos seus magnos e indiscutíveis critérios - e duvido que se trate de assunto de medalhas.
Há cerca de dois anos, procurando aqui e ali, entre os melhores textos de Língua Portuguesa disponíveis na Internet, acabei por ficar rendido a uma série de blogs brasileiros. O que era mais surpreendente a grande qualidade da sua língua, a grande imaginação do seu texto. O que era mais comovente: eram pouco, muito pouco conhecidos. Entre eles estavam blogs como "Nibelunga do Cabelo Duro", "Megeras Magérrimas", "Drops da Fal" ou "Caderno Lilás", por exemplo. Só um ano depois, para grande surpresa minha, apareceram blogs portugueses femininos de qualidade comparável. Entre eles estavam e estão, certamente, "Bomba Inteligente", "Xanel Cinco", "O Meu Moleskine", "Diotima", "Vieira do Mar", a participação feminina no "Blogame Mucho" ou "Rititi". Ao leitor ou à leitora que não estejam atentos, recomendo que vão à net e procurem.
Rititi é pseudónimo de Rita Barata Silvério, que acaba de publicar um livro com alguns textos do seu blog (leva o título "O livro da Rititi", edição Oficina do Livro). No meu país envergonhado e lírico, nostálgico e - no entanto - pouco romântico e pouco corajoso, "O livro da Rititi" é mais do que um conjunto de textos sobre a vida que passa. É o retrato da nova mulher portuguesa. Podemos não gostar muito do retrato, mas é o retrato de uma mulher corajosa que não se reduz ao seu papel de mulherzinha, nem vibra com a magra condição da "mulher de dentro de casa" ou da condenada à solidão das bibliotecas. Esta é uma "mulher furiosa" (que, por apenas coincidência, vive entre Espinho, Lisboa, Estremoz e Madrid), cuja linguagem não é amena nem educada pela literatura das mulheres.
O que representa a Rititi? Um mundo que colocaria os homenzinhos em sentido. Um mundo que a covardia portuguesa, feita de muita literatura e de umbigos enormes, não autorizaria. O mundo da Rititi é o das mulheres que não são "as nossas mulheres portuguesas" oprimidas pelo fascismo ou enquadradas pelo alto moralismo da Esquerda. Ligeireza e superficialidade, sexo e desbragamento, coragem e romantismo, álcool e casamento, família tradicional e comida com calorias – este é o mundo da Rititi, luminoso e frontal, malcriado e arrogante, delicioso, cheio de humor, culto, politicamente à Direita, anarquista e anárquico, solidário com o sofrimento, mas sem o "nenhenhém" lírico e palavroso da caridade moral das nossas letras.
De Portugal, Rititi tanto fala da maravilhosa luz de Lisboa e da "francesinha" comida num restaurante de Espinho, como da fealdade dos políticos e do absurdo do IP5, da falta de dignidade dos homens e do ridículo provincianismo cultural das mulheres.
Ah, não gostam do retrato? Tanto pior. "O Livro da Rititi" é uma afronta à mediocridade do feminismo (que detesta a palavra "gajas") e à "superioridade moral" dos nossos sacerdotes da cultura. Está cheio de vento, de amor, de violência, de riso, de sarcasmo, de uma magnífica Língua Portuguesa que nunca trai esse novo sentimento português, que já não é trágico nem tem bigode ou pais da pátria para venerar. Leiam, leiam. Homens, tremam. Mulherezinhas, aprendam.

Jornal de Notícias
Quinta-feira, 16 de Junho de 2005

27.11.05

CRUZ ALTA, VERÍSSIMO. CEM ANOS DE VERÍSSIMO. Para quem vem do mar, Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, inaugura o chamado território das missões. Erico Verissimo nasceu aí em 1905 e atravessou quase todo o nosso século XX. Estive duas vezes em Cruz Alta quando descia em busca da paisagem das missões – campos cruzados de rios, lagoas, neblinas, na direcção da Argentina e, mais ao norte, do Paraguai. É naquela parte do Brasil que se descobre com mais clareza que Camilo, bem como o nosso século XIX, tinham razão. Não se tratava de Brasil mas de Brasis. Quem lesse Os Sertões, de Euclydes da Cunha, imaginaria que se falava de outro país, completamente diferente e noutro hemisfério. O primeiro parágrafo de Os Sertões serve de prova: «O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior.» É certo que a linguagem de Euclydes se transformou naquela exuberância que nem ele próprio esperava antes de partir para Canudos – essa mesma exuberância também deve ter assustado Vargas Llosa, quando leu o livro e escolheu o tema.

Cruz Alta não tem nada a ver com o assunto nem com a geografia. Quase todo o Rio Grande do Sul me serve para provar a existência dos Brasis diante do Brasil federativo, em planisfério, tropical e moreno. Quem leu Tabajara Ruas (o de Netto Perde a Sua Alma ou O Fascínio) ou Luiz Antônio Assis Brasil (o de O Pintor de Retratos ou A Margem Imóvel do Rio) conhece essas neblinas do pampa, a extensão dos pastos, as estradas lamacentas, casas pintadas de branco rodeadas de colinas, vinhas, aquele frio que se aprende mais na literatura do que na pele. Erico Verissimo, por isso mesmo, foi prejudicado pelo paradigma baiano. Qualquer biografia menciona a sua primeira viagem para o Rio de Janeiro e reconhece o momento, como se fosse uma genuflexão: ele encontrou-se com Jorge Amado por volta de 1934. Não foi uma genuflexão. Mas ficou como um sinal.
O Brasil de Verissimo era muito distinto daquele que nos chegava em caixotes de folclore e dialectos locais. Não tinha, inscritos no frontispício, «a cor local», o regionalismo, o apego à geometria do realismo socialista. Não que não pudesse ser realismo socialista; mas não tinha o cartaz à porta, convidando a entrar por esse lado. O livro de Verissimo mais lido em Portugal, de resto, foi Olhai os Lírios do Campo. Com aquele título (de 1938), o livro parecia inofensivo e adolescente, muito feminino; uma parte do seu sucesso vinha daí. Mais tarde, em 1966, antes da entrega do poder às patrulhas ideológicas, o próprio Verissimo (falando da importância do livro, que, graças às suas vendas, lhe permitiu viver como escritor) teve o cuidado de reconhecer que Olívia era uma personagem impossível e que Eugênio tinha remorso social a mais. A declaração não é muito importante, mas mostra até que ponto o autor estava consciente da armadilha.
Mas é a sua trilogia de O Tempo e o Vento (O Continente, O Retrato e O Arquipélago) que revela o Brasil que ainda hoje é pouco conhecido na Europa. O fresco histórico é contado a partir do Rio Grande do Sul (e fazendo a sua história) sem ceder um milímetro ao regionalismo mais consensual. A esta distância, confesso, lê-se com dificuldade: é uma saga com muito tom épico, onde Jânio Quadros e Getúlio Vargas têm direito a tratamento ficcional. Mas ainda hoje estou convencido de que, se Verissimo escrevesse em castelhano, José Lírio teria sido um percursor do «fantástico latino-americano» com a vantagem de, ao contrário dos personagens de Guimarães Rosa, não ser um pobre a falar com curso superior. Mas Verissimo tinha lido outros autores, de Katherine Mansfield, como dizem as suas biografias, até Wilde, Shaw e Aldous Huxley. E portanto levou o rótulo de «gaúcho urbano» numa altura em que todo o cânone era verdadeiramente sertanejo.
Durante anos, o Rio Grande passou por ser esse retrato de um pampa adormecido e impróprio para exportação, onde nevava e havia sotaque com espanholismo. Só verdadeiramente depois da década de setenta mostrou o seu rosto. As obras de Verissimo, que estão a ser republicadas, em série, pela Companhia das Letras, são uma oportunidade para reconstituir a história da literatura brasileira de hoje a partir de outro ponto de vista não tão folclórico. Quando hoje lemos Tabajara Ruas e Assis Brasil (nos seus retratos cruéis sobre a guerra dos Farrapos ou nas suas melancolias sulistas) compreende-se melhor o papel de Verissimo.

19.11.05

SEU JORGE OFENDE A CENTRAL ÚNICA DAS VÍTIMAS
Por Reinaldo Azevedo (Site Primeira Leitura)

Deu-se, na segunda-feira, uma das melhores entrevistas do Roda Viva desde que o programa existe. Se não perco a conta, foi o 1001, o que é um bom augúrio para os próximos mil. Nesse sentido, Lula, o número 1000, na semana passada, foi um bom desfecho para tudo o que se foi, para o passado, para o Brasil que está, felizmente, morrendo. Lula é a nossa tragédia pregressa. Seu Jorge, cantor, ator, músico, compositor, performer, ex-morador de rua, é a estrela do início do novo milênio. Quem não viu tem de comprar o DVD. Seu Jorge me deu até alguma esperança. E olhem que isso não é assim tão fácil. E também reiterou uma certeza: o establishment intelectual brasileiro é só um cadáver à espera das exéquias. Está atravessado no meio da sala da consciência nacional.
Ele canta bem, compõe algumas músicas agradáveis na mistura de gêneros populares que abraçou e é bastante articulado. Como toda pessoa de talento, cultiva o velho e bom individualismo — não este que os cretinos vivem satanizando por aí; refiro-me a outro. Ele sabe que será melhor ou pior, bem ou malsucedido, a depender de seu esforço pessoal, de suas escolhas, de seu brilho. Paulo Markun, mediador e também diretor do programa, deixou claro que ele era o convidado, entre outros motivos, por causa do Dia da Consciência Negra, que se comemora no próximo dia 20 — Zumbi dos Palmares foi morto num 20 de novembro. Ocorre que Seu Jorge vale a pena ainda que fosse verde, tivesse só um olho no meio da testa e mexesse as antenas quando canta.
Entrevistaram-no Maria Amélia Rocha Lopes, jornalista e crítica musical; José Vicente, presidente da ONG Afrobras; Lázaro de Oliveira, da TV Cultura; Pedro Alexandre Sanches, da Carta Capital; Deise Benedito, do Fórum Nacional de Mulheres Negras; o historiador e professor Joel Rufino dos Santos, da UFRJ, e Luciano Ramos, crítico de cinema da Rádio Cultura. Pelo menos José Vicente, Deise Benedito e Joel Rufino tinham uma clara identificação com a causa dos negros, o que ficou evidente ao longo da entrevista. O convidado deu um show.
Seu Jorge não quer ser mais escravo. A escravidão saiu de dentro dele. Ele não quer ser mais escravo porque é negro. Ele não quer ser mais escravo porque foi pobre. Ele não quer ser mais escravo porque é brasileiro. Ele não quer ser mais escravo porque é do Terceiro Mundo. Seu Jorge é senhor absoluto de sua vida: é senhor porque seus ancestrais foram escravos; é senhor porque é negro; é senhor porque foi pobre; é senhor porque é brasileiro. É senhor porque é do Terceiro Mundo. É senhor porque quer.
Escrava, com todo respeito, de uma velha escola se revelou a maioria dos entrevistadores, isto sim, fossem brancos ou negros, militantes ou jornalistas. Pouco escapou. Um, branco, queria que Seu Jorge contasse como foi discriminado em Londres “porque era negro”. Os advogados putativos dos “perseguidos” têm sede de uma causa. Só que o homem não quis ser vítima, não. Contou que foi ele a esnobar os ingleses. Quanto voltou ao país, deixou claro, exigiu tratamento dispensado às idiossincrasias de um João Gilberto. Ele não berra. Ele canta. Ele não distribui panfletos. Ele pensa. Um outro, intelectual negro, porta-voz de uma causa, queria arrancar de Seu Jorge a declaração da supremacia da cultura negra, tão discriminada. E o cantor, nada! Para ele, tudo vale. Não tem essa de superioridade. O rochedo fica, poetizou. A onda bate nele, morre na praia, não dura.
Seu Jorge mora em São Paulo — “Túmulo do samba?”, alguém perguntou ao cantor fluminense. Que nada! Ele adora São Paulo. O samba não é o Rio. O Rio não é a Zona Sul. Seu Jorge fez blague com aquela gente tostadinha e progressista “que aplaude o pôr-do-sol”. Ah, o insofismável brilho do talento. Queriam porque queriam que ele se sentisse discriminado. E ele dizia: “Mas eu não sou”. Queriam porque queriam que ele exercesse o doce charme do vitimismo. E ele cada vez mais dono de si mesmo. Queriam porque queriam que ele carregasse uma bandeira. E ele fazia a apologia do esforço pessoal, do talento pessoal, da dedicação pessoal. “Mas, então, basta cantar?”, perguntou um outro já à beira do desespero. Não, tem de ter algo mais. Ele diz que educa os filhos de outro jeito. Quer que estudem, que se esforcem.
Seu Jorge falou até sobre a França, onde faz muito sucesso. Parece não aprovar — só jornalista branco e ocidental é que aprova — as maluquices da intifada européia. O homem lembrou que os franceses dão benefícios sociais aos imigrantes e que acham injusto aquilo tudo acontecendo. Ora, por que não? Seu Jorge morou na rua entre 1990 e 1997. Faz oito anos que decidiu ser o que queria ser quando já não queria mais ser morador de rua. Não teve a má sorte de cair nas teias de proteção de um padre Júlio Lancellotti. Ou se tornaria morador de rua profissional. Cantando nos protestos, debaixo dos viadutos e pontes, onde, escreveu um articulista, Anatole France teria dito (não disse) que os pobres têm o direito de morar. Seu Jorge mora em qualquer lugar.
Seu Jorge é adoravelmente arrogante. Tem a arrogância dos que se prezam. Markun, quando flagrado, estava visivelmente feliz. Sabia que o programa que conduz e dirige estava marcando um golaço. Mas havia olhos aflitos naquela roda-viva. Meus Deus! O que faremos com todas as piedades que trouxemos aqui? Onde vamos pôr toda a nossa revolta apreendida nos manuais submarxistas de formação da etnia brasileira? Mais um pouco, e corria o risco de alguém disparar: “Quem esse preto pensa que é para ficar dispensando o nosso carinho protetor, esnobando a nossa embevecida admiração? Ele era a nossa melhor chance de uma vítima triunfante. E, no entanto, comporta-se assim...”. Seu Jorge disse que Vinicius de Moraes falou besteira ao classificar São Paulo de túmulo do samba.
Gente boa não baixa a cabeça. Nem diante dos piedosos, que é quase sempre uma forma sublimada de arrogância. Ter chamado Seu Jorge como homenagem à Semana da Consciência Negra foi um grande acerto. Mas foi se revelando, como direi?, também um erro. Ele é, isto sim, um bom e quase irritante brasileiro, também negro. Boa parte dos presentes queria falar sobre o tal “racismo cordial”, e o homem citava, sem querer, Eleanor Roosevelt: “Ninguém me ofende a menos que eu queira”. Aí, o representante da ONG falou de um evento que vai reunir personalidades negras. Queria saber o que ele achava. Ele achava legal, claro, claro... Mas Seu Jorge é muito mais do que negro, é muito mais do que branco, é muito mais do que toda aquela patota que estava a fim de tirar uma casquinha do seu talento, encaixando algum proselitismo no ar, para fazê-lo também veículo de uma causa. Seu Jorge não é cavalo dos maus espíritos de teorias capengas.
Seu Jorge não bota fogo em carros. Seu Jorge não bota fogo em prédios. Seu Jorge não tem pena de si mesmo. Seu Jorge canta. Seu Jorge compõe. Seu Jorge adora se saber bom e fazer sucesso. Seu Jorge não tem a menor disposição para o sofrimento e dispensa os enfermeiros de seu ego. Seu Jorge é brilhantemente vaidoso. Quando Seu Jorge fala sobre os que falam sobre Seu Jorge, Seu Jorge só conta os elogios que fazem a Seu Jorge. Seu Jorge é, definitivamente, um homem superior.
Músicas etc. e tal
Eu o ouvi pela primeira vez não faz tanto tempo. É uma das poucas concessões que faço à chamada música popular brasileira. Não que me considere um especialista em qualquer outra. Não gosto tanto assim de música. Gostar mesmo, eu só gosto de palavras. Mas eu passei a ouvi-lo. Aprecio a sua voz como apreciava a de Cássia Eller. Há em ambos uma afinação única, meio desengonçada, meio gauche, que me agrada muito. Incomoda-me gente que canta “certinho”, que sussurra afinações. Cantores da Bossa Nova sempre me irritaram um tantinho. Eu preferia, por exemplo, Tom Jobim já na fase do fôlego curtíssimo. Porque a música era uma maravilha, e a voz lhe saía errado. Ouvi Seu Jorge e gostei. Esperava um gancho para falar sobre ele.
Decidi ver a entrevista e estava um pouco apreensivo. Artistas falam muita besteira. A maioria deveria ficar de boca fechada. Dia desses, na TV, em ensaios (chamam-se “pilotos” em linguagem técnica) de um programa jornalístico diário de que vou participar, comentei, um pouco a sério, um pouco por blague, que cantores deveriam só cantar, jamais pensar. Eu me referia à participação de Alceu Valença, outro bom da MPB, num protesto idiota contra Bush. “Idiota” não porque Bush não possa ser alvo de protestos (não estou debatendo isso aqui, não agora), mas porque o cantor pernambucano, na manifestação, era de uma irrelevância danada. A música que ele fez para Copacabana é que é a sua praia. No mesmo parágrafo, afirmei que outros, como Fagner, poderiam parar de cantar e só dar entrevistas.
Meus colegas protestaram docemente. Acharam o comentário preconceituoso, agressivo talvez. Todo homem tem direito de ter preconceitos. Quem não tem preconceitos é gaveta ou é idiota. O bom dos meus é que são irrelevantes. O Fagner não vai deixar de cantar só porque eu o aconselhei a tanto. O Alceu não vai deixar de fazer besteira política só porque eu sugeri. O máximo que posso ganhar é a antipatia dos fãs de ambos. Preconceito em que o único prejudicado sou eu é, então, problema exclusivamente meu. Penso em criar um movimento de combate ao preconceito dos que não aceitam os meus preconceitos.
Retomando o fio. Eu estava algo apreensivo porque temi que ele fosse macaquear um discurso que, sabidamente, não é o seu. Receava que fosse engolido pela voz média do consenso oficial: haveria um terrível preconceito racial no Brasil, tanto pior porque velado. É o que todo militante negro acha. É o que todo branco de esquerda acha porque não pode ver uma causa passar ao lado sem engrossar o cordão dos puxa-sacos de qualquer vítima de plantão. Mas que nada! Seu Jorge está entre aqueles poucos que devem tanto cantar como falar. Não se permitiu ser capturado por todas as redes de boa consciência que lhe foram lançadas. Seguiu adiante: talentoso, na dele, preocupado apenas em fazer cada vez melhor aquilo que sabe fazer.
Há três anos
E ainda me senti entre homenageado e vingado. Há três anos, protagonizei, no mesmo Roda Viva, também por ocasião da Semana da Consciência Negra, um debate bem azedo com um acadêmico. Começamos nos desentendendo sobre cotas raciais e terminamos nos estranhando sobre tudo o mais, inclusive a qualidade do livro que ele havia escrito e que servia de referência àquele encontro. Por uns bons meses, o programa foi um estigma na minha vida. Chegavam-me xingamentos de todos os lados. Porque me opus (e me oponho) a cotas, chamaram-me “racista”, “direita”, “fascista” e outras delicadezas.
Não vou requentar aquele debate porque os números, hoje ainda mais do que antes, me dão razão absoluta. Três anos depois, o negro Seu Jorge, com alma de negro, cabelo de negro, história de negro, diz àqueles olhos que começaram caridosos e solidários e terminaram espantados, sem ter onde pôr seu estoque de piedades e vocação militante: “Protejam-me do seu amor, protejam-me dos seus cuidados, protejam-me de suas causas, protejam-me de seus carinhos”.
Seu Jorge provou que o establishment politicamente correto agoniza. Sua entrevista não torna melhor a sua música. Mas eu o ouvirei ainda com mais prazer. Sua competência ofende a Central Única das Vítimas. Longa vida a seu Jorge!
Publicado em 15 de novembro de 2005.

18.11.05

FRANCISCO JOSÉ VIEGAS, ENQUETE MELANCOLIQUE
(LE MONDE, Article de Gérard Meudal, paru dans l'édition du 07.10.05)

La rencontre était prévisible, inévitable sans doute, même si elle a mis un certain temps à se produire, celle de la saudade portugaise et du roman policier. On connaissait déjà l'inspecteur dépressif, en proie à des problèmes professionnels et sentimentaux, si en plus il est portugais, voilà qui ajoute une note originale de mélancolie à la noirceur du tableau. Les Deux Eaux de la mer sont le premier volume d'une trilogie que Francisco José Viegas a consacrée aux aventures de deux amis policiers, Filipe Castanheira, qui a quitté Lisbonne pour s'installer aux Açores, et Jaime Ramos, qui vit à Porto.
Le climat insulaire et plus généralement la contemplation de la mer provoquent une forme particulière de saudade. Est-ce justement ce qui a poussé Rita Calado Gomes à venir mourir sur une plage des Açores ? C'est sans importance puisque la police a conclu à une mort accidentelle et que l'affaire est classée.
Pourtant, en ce début d'août 1991, au moment où on retrouvait le cadavre de Rita, son amant, Rui Pedro Martin, avocat d'affaires à Porto, était assassiné sur une plage espagnole en Galice. Rui avait soigneusement organisé sa disparition, coupant tout lien avec ses amis, se retirant sur la Costa da Morte, près de ce cap Finisterre, qui figurait pour les Anciens le bout du monde. Sa mort faisait-elle partie d'un scénario qu'il aurait imaginé ? Il semble plutôt qu'il avait prévu de se retirer des affaires, d'entamer une nouvelle vie pour oublier ses activités d'espion, ou peut-être de se mettre à l'abri. Mais peut-on prendre au sérieux un espion portugais ? Le pays est-il assez stratégique pour se doter de véritables services secrets ? Et si Rui Pedro avait simplement cherché à se donner de l'importance en rejouant le roman de John Le Carré, Un espion parfait, qui évoque les derniers jours de Magnus Pym ?
MÉTÉOROLOGIE TOURMENTÉE
Les lecteurs friands d'intrigues bondissantes, toutes en poursuites et en morts violentes, seront déçus. Ici, l'enquête se transforme en méditation sur la mort au rythme lent de nuages qui passent devant la lune. Francisco José Viegas s'offre même le luxe d'un chapitre entier, à la manière de Perec, où un policier énumère, selon ses propres mots, « toutes les évocations dont je peux être capable pendant ce qu'il me reste de vie. Un phare. Une rose jaune dans un vase en verre à côté de la fenêtre. Un fleuve au printemps, à l'aube... » Le paysage prend une importance singulière, particulièrement ce cap Finisterre qui semble le décor idéal pour une réflexion sur la fin et la disparition. L'intrigue garde tout de même ses droits et l'enquête sera parfaitement élucidée. Mais tout est-il résolu pour autant et le héros peut-il considérer qu'enfin la lumière est faite ? « Par les livres et les rêves évidemment il avait appris que le sens de la vie est toujours défaillant et que seuls les rêves et les livres peuvent l'éclairer et nous apprendre à nommer les choses inconnues qui nous assaillent. » Entre l'anticyclone des Açores, les rivages du Portugal ou cette Costa da Morte de Galice, il souffle toujours des vents irrésistibles. Cette météorologie tourmentée devient chez Viegas une métaphore convaincante de la destinée humaine.

PÔR FIM AO GOVERNO LULA.
ARTIGO DE ROBERTO MANGABEIRA UNGER.

Afirmo que o governo Lula é o mais corrupto de nossa história nacional. Corrupção tanto mais nefasta por servir à compra de congressistas, à politização da Polícia Federal e das agências reguladoras, ao achincalhamento dos partidos políticos e à tentativa de dobrar qualquer instituição do Estado capaz de se contrapor a seus desmandos.
Afirmo ser obrigação do Congresso Nacional declarar prontamente o impedimento do Presidente. As provas acumuladas de seu envolvimento em crimes de responsabildade podem ainda não bastar para assegurar sua condenação em juízo. Já são, porém, mais do que suficientes para atender ao critério constitucional do impedimento. Desde o primeiro dia de seu mandato o Presidente desrespeitou as instituições republicanas. Imiscuiu-se, e deixou que seus mais próximos se imiscuíssem, em disputas e negócios privados. E comandou, com um olho fechado e outro aberto, um aparato político que trocou dinheiro por poder e poder por dinheiro e que depois tentou comprar, com a liberação de recursos orçamentários, apoio para interromper a investigação de seus abusos.
Afirmo que a aproximação do fim de seu mandato não é motivo para deixar de declarar o impedimento do Presidente, dados a gravidade dos crimes de responsabilidade que ele cometeu e o perigo de que a repetição desses crimes contamine a eleição vindoura. Quem diz que só aos eleitores cabe julgar não compreende as premissas do presidencialismo e não leva a Constituição a sério.
Afirmo que descumpririam seu juramento constitucional e demonstrariam deslealdade para com a República os mandatários que, em nome de lealdade ao Presidente, deixassem de exigir seu impedimento. No regime republicano a lealdade às leis se sobrepõe à leadade aos homens.
Afirmo que o governo Lula fraudou a vontade dos brasileiros ao radicalizar o projeto que foi eleito para substituir, ameaçando a democracia com o veneno do cinisimo. Ao transformar o Brasil no país continental em desenvolvimento que menos cresce, esse projeto impôs mediocridade aos que querem pujança.
Afirmo que o Presidente, avesso ao trabalho e ao estudo, desatento aos negócios do Estado, fugidio de tudo o que lhe traga dificuldade ou dissabor e orgulhoso de sua própria ignorância, mostrou-se inapto para o cargo sagrado que o povo brasileiro lhe confiou.
Afirmo que a oposição praticada pelo PSBD é impostura. Acumpliciados nos mesmos crimes e aderentes ao mesmo projeto, o PT e o PSDB são hoje as duas cabeças do mesmo monstro que sufoca o Brasil. As duas cabeças precisam ser esmagadas juntas.
Afirmo que as bases sociais do governo Lula são os rentistas, a quem se transferem os recursos pilhados do trabalho e da produção, e os desesperados, de quem se aproveitam, cruelmente, a subjugação econômica e a desinformação política. E que seu inimigo principal são as classes médias, de cuja capacidade para esclarecer a massa popular depende, mais do que nunca, o futuro da República.
Afirmo que a repetição perseverante dessas verdades em todo o país acabará por acender, nos corações dos brasileiros, uma chama que reduzirá a cinzas um sistema que hoje se julga intocável e perpétuo.
Afirmo que, nesse 15 de novembro(*), o dever de todos os cidadãos é negar o direito de presidir as comemorações da proclamação da República aos que corromperam e esvaziaram as instituições republicanas.

{Folha de São Paulo, 15 de novembro de 2005}

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(*) O 15 de Novembro assinala a implantação da República no Brasil.

17.11.05

UMA INTERRUPÇÃO POLITICAMENTE CORRECTA E PEDAGOGICAMENTE ASSIM. É este o texto citado no Origem, e retirado da edição de O Globo.

Argentina tem concurso de literatura gay para crianças
Foram anunciados nesta quarta-feira os vencedores do primeiro "1º Concurso de Contos Infantis sobre Diversidade Sexual". Criado na Argentina, o concurso premiou contos que abordassem a homossexualidade de forma acessível a crianças.

Segundo o autor de "Pañuelito celeste", o argentino Leandro Fogliatti, "não há nada de chocante ou agressivo no concurso. Na maioria das vezes são os adultos e não as crianças os responsáveis pelo preconceito". Os contos vencedores podem ser lidos em www.inversa.org/ganadores.php.

A história vencedora foi de Gonzalo Serrano e Nilo Martin, dois meninos madrilenos. Em "Contracorrente", eles contam a história de um jovem que, para se tornar um adulto em sua tribo, precisava buscar uma companheira. Ele deixa o povoado em busca de uma mulher que o interessasse, mas acaba descobrindo em outro jovem seu par. na volta a tribo, ele acaba sendo bem recebido, embora temesse ser expulso.

O segundo colocado "Encantado de Conocerme", da portenha Liza Porcelli Piussi, segue o mesmo caminho, ao relatar a história de um sapinho que duvida do próprio encanto por não encontrar uma rã que o beije e, assim, o transforme em príncipe. No fim, um sapo ancião o coloca em xeque, questionando-o sobre sua sexualidade.

O terceiro colocado foi "Pañuelito celeste", também de uma criança de Buenos Aires, Leandro Fogliatti. Trata do amor entre dois jovens enquanto um deles descobre sua predileção por trajar-se como menina e, assim, acaba salvando a apresentação de fim de ano da escola, ao substituir uma bailarina que teve um piti antes de entrar no palco.

O quarto colocado foi a brasileira Lilian Veiga Vinhas, seguida por representantes de Chile, Venezuela e até Bélgica.

7.11.05

COISAS ARRASTADAS PELO VENTO. O arrastão de Carcavelos surpreendeu muita gente e eu acho que há razões para isso. Não vale a pena sermos cínicos ao ponto de dizer que “estava escrito” – isso tanto serve para ser usado pela extrema-direita racista, que culpa “os pretos e os estrangeiros” pelos desacatos na velha pátria (como se fôssemos todos branquinhos e enjoados), como pela esquerda fatal que aprecia o retrato de vitimização “dos marginalizados e dos excluídos” (como se em Portugal houvesse apartheid). Esse caldeirão é redutor e nele cabe tudo o que não vale a pena discutir com seriedade. Na verdade, não estava escrito. Poderia acontecer, mas a dimensão do estrago tomou proporções alarmantes, com as televisões a anunciar mais “arrastões” onde se tratava apenas de assaltos e a tremer de comoção com um roubo por esticão cometido por um “cidadão de raça negra”.
Há uns anos, era Fernando Gomes ministro da Administração Interna, e uma actriz foi assaltada. A actriz murmurou ainda que Lisboa era pior do que o Rio de Janeiro. Só umas semanas depois toda a gente se deu conta do exagero e do ridículo. Imediatamente, explodiram comentários, na imprensa e na rádio, sobre o mal que os pretos estavam a fazer à pátria, ainda que o caso não tivesse registado as proporções trágicas do Meia Culpa, em Amarante (em que só brancos estavam envolvidos, portanto). A paranóia foi gritante. As televisões adoram.
Esta questão do racismo volta de vez em quando à tona. Uns energúmenos organizaram uma manifestação “patriótica” para pedir que os pretos sejam expulsos e a pátria salva da invasão dos estrangeiros. A praia de Carcavelos, entretanto, voltou à calma com menos gente, que prefere outras paragens. O problema de Carcavelos, aliás, não é de integração racial nem de segregação racial: era de policiamento. Pretos ou brancos, adolescentes “excluídos” ou imberbes “integrados”, os criminosos devem ser tratados como criminosos pela polícia. Não há volta a dar-lhe. O resto é cair na vitimização rota, muito sociológica e sacana, ou no racismo de pretos e de brancos, demasiado imbecil.
Há aqui uma questão central: a da nacionalidade. Eu quero que o meu país seja feito de pretos e de brancos, de católicos e de muçulmanos, de ucranianos e de beirões. É uma ideia pessoal e admito que seja lamentável – mas não vejo outra solução. Estamos todos cá. Já vai longe o tempo em que tivemos um treinador da selecção nacional de futebol que defendia a existência de “portugueses legítimos” e de “portugueses de segunda”. Para mim, Deco é como se tivesse nascido no Minho e um miúdo nascido de pais bielorrussos que trabalham em Lisboa é como se fosse ribatejano.
O presidente Sampaio foi à Cova da Moura. Devia ir mais vezes porque vivem lá portugueses e não pretos. E o presidente da Câmara da Amadora também. Se aquelas pessoas são portuguesas, são portuguesas – devem obedecer às nossas leis, ser tratados como cidadãos, presos se cometem crimes, hospitalizados se estão doentes, perseguidos se praticam excisão feminina, e os seus filhos educados nas escolas públicas. Essa é a lei que eu defendo. Se não são portugueses, devem comportar-se como estrangeiros e respeitar o país onde vivem até que decidam, de acordo com uma lei justa e generosa, optar pela nossa nacionalidade. E aos estrangeiros devemos também um pouco de atenção. Nós fomos estrangeiros em qualquer outro lugar da nossa vida.
Isto não evita os arrastões, mas ajudará bastante. O pior racismo é o da iniquidade com que se permite a miséria. A pretos ou a brancos.
POIS TU FOSTE ESTRANGEIRO. Em 1975, a xenofobia nacional, herdada do salazarismo e do que o antecedeu (o provincianismo pacóvio e a Inquisição), foi mais uma vez posta à prova diante da chegada de meio milhão de portugueses vindos das antigas colónias. Deserdados e hostilizados pelo poder político-militar da época, que lhes desaprovava a biografia e as ideias, os retornados mudaram Portugal em poucos anos: evitaram que a província desaparecesse da forma abrupta, transportando consigo criatividade, energia e vontade de vencer; contribuiram para mudar os hábitos e os costumes de um país medíocre cheio de moralistas pálidos e machistas. Fizeram-no contando também com a hostilidade do cidadão comum, que os considerava portugueses de segunda. Eles, sim, os herdeiros legítimos de Afonso Henriques, eram os «portugueses». Desaprovando largamente a vinda de pretos e de emigrantes de Leste, sem falar dos brasileiros, os «portugueses» viveram os anos oitenta e noventa à sombra de muito do que os estrangeiros fizeram por eles – das auto-estradas à Expo98. Os «portugueses» não se incomodaram com o facto de milhares de trabalhadores africanos viverem em condições degradantes nos estaleiros do Alqueva, no lamaçal da Expo e nas encostas da Venda Nova. Apreciavam, até, o ponto de vista «étnico», com os bares caboverdianos e as discotecas angolanas, ou o serviço doméstico barato – mas nunca prestaram atenção (salvo quando eram atingidos) à espiral de violência que tomava conta dos subúrbios e lhes destruía os comboios de Sintra. Daí, passaram a olhar de viés os brasileiros: entre eles, os dentistas (que vieram tornar mais acessível o mercado) e os empregados de lojas e restaurantes (que atendiam melhor). Depois, vieram os emigrantes de Leste, que – mesmo sujeitos às mafias criminosas que andavam à solta pelo País – pela sua competência conquistaram lugares na construção civil, no serviço doméstico e na pequena indústria (muitos deles com qualificação superior). Isso está tudo muito bem, mas os «portugueses» também acham que eles lhes tiram o lugar (até há enfermeiros espanhóis, imagine-se), que eles acabam por subir na vida, por comprar casa e assentar família. Que eles, um dia, podem votar. Que os filhos deles, um dia, podem ir parar à administração pública, às universidades. Que um dia eles – que «vieram com uma mão à frente, outra atrás», como manda dizer a tradição – vão criar empresas e enriquecer. Esse cenário é inaceitável para os «portugueses». Que os estrangeiros e emigrantes estejam entre nós, é uma coisa (podem viver nos estaleiros, apanhar o autocarro das cinco da manhã, os seus filhos tratados pelas misericórdias e organismos de «inserção social», podem as mulheres viver aprisionadas em bordéis de «empresários da noite» pela província fora, podem correr para as filas de legalização durante a madrugada). Inteiramente diferente é que façam disto a sua terra; «eles» não passam de brasileiros, caboverdianos, russos, ucranianos, moldavos ou marroquinos e paquistaneses. Este ano podem entrar 6.500. Os cavalheiros da indústria já vieram dizer que é pouco. O governo mantém que basta. Se forem precisos mais (a expressão é chocante, não é?), já se sabe: entram ilegalmente. Sempre podem viver nos estaleiros, embebedar-se com vodca de Sacavém e com o tempo há-de ver-se. Não pensem é que podem ser «portugueses».

28.10.05

ENTREVISTA AO "PÚBLICO": O REGRESSO DO DETECTIVE JAIME RAMOS.

Francisco José Viegas foi professor universitário, é escritor e jornalista. Durante 14 anos dirigiu a revista "Ler". Actualmente tem um programa sobre livros na televisão, Livro Aberto (na RTPN e na RTP2), e um programa de radio, Escrita em Dia (na Antena 1). Continua a escrever crónicas no "Jornal de Noticias", na revista "Elle". Publica receitas que qualquer pessoa pode seguir na "Grande Reportagem" (de que foi director, no período pós Miguel Sousa Tavares) e na "Volta ao Mundo", revista para a qual também faz reportagens de viagens. Esse amor pela confecção de alimentos vai transformar-se, ainda este ano, num progra­ma de cozinha, a passar na RTP2, onde Viegas irá cozinhar em diferentes cozinhas de convidados.

Há vários anos inventou uma personagem, com a qual entrou no mundo da literatura: Jaime Ramos, um detective do Porto. "As Duas Aguas do Mar", "Um Céu Demasiado Azul", "Um Crime Capital", "Morte no Estádio" e "Um Crime na exposição" são os livros on­de ele aparece. E agora em "Longe de Manaus" (todos publicados pela Asa).

Mantém alguns blogues, uns com mais regularidade do que outros: o Aviz (pessoal), o Gávea (sobre literatura brasileira), o Livro Aberto (sobre o programa) e por fim, em teoria, mantém uma colaborarão no Fora do Mundo. Isto dos blogues a certa altura deu em "vicio". Tinha de “postar” todos os dias. Uma hora por dia era sagrada na dedicação ao blogue. Foi aliás agarrado a um computador portátil que transporta consigo numa mochila que o Mil Folhas o foi encontrar num hotel de Lisboa, onde decorreu esta entrevista.
Estava de partida mais uma vez para o Brasil. E já tinha escritos num caderninho preto, Moleskine, alguns capítulos da próxima história de Jaime Ramos.

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"Lourenco Marques", o seu romance anterior, que foi um sucesso de vendas, não tinha a per­sonagem Jaime Ramos. Como é que foi regressar ao seu detective?
O "Lourenço Marques" estava para ter o Jaime Ramos, mas percebi que não podia. A ideia desse livro apareceu-me quando estive em Moçambique, pela primeira vez, em 1995. Aconteceu-me o que normalmente acontece quando vou a um sitio novo. Penso sempre: "Aqui dava para fazer uma história!" Nessa altura, escrevi os primeiros capítulos de uma história policial. Quando voltei pela segunda vez a Moçambique, meses depois, apanhei uma história com­pletamente diferente.

Qual era?
Era a história dos portugueses de Moçambique. Que me reenviava também para o tempo em que era um miúdo de liceu, quando começaram a chegar os retornados. Ti­nha família em África que regressou nessa altura e o contacto com eles permitiu ver que tinham uma cultura diferente, outros hábitos alimentares. um corpo mais disponível, mais “mostrável”.
Sempre quis escrever sobre essa África dos Portugueses. Pegar naqueles Portugueses e contar que tinham tido uma vida feliz em África. Ou seja, permitir que eles dissessem a frase, que é muito Karen Blixen: "Eu tive uma quinta em África". Durante muito tempo isso era impossível, politicamente incorrecto, essa gente esteve durante muito tempo escondida, não podia mostrar o seu grau de felicidade na memória.

Porque é que não podia ser uma história com Jai­me Ramos?
Porque era muito diferente de uma história policial. Era uma história sobre memórias, sobre medos, sobre perdição. Como costumo dizer, tinha um contrato com o Jaime Ramos há muito tempo e portanto tinha de Ihe dar trabalho. Por outro lado, queria continuar, de certa a mane ira, o trabalho de "Lourenço Marques". Ou seja, o trabalho daqueles Portugueses que não estão em Portugal, que vivem fora e que têm uma má relação com o país mesmo assim.
A certa atura isso revelou-se-me. Estava em Timor, muito longe, no velho hotel Timor, onde há uma mesa enorme que todas as sextas-feiras era ocupada com um jantar com Portugueses que estavam lá. Eram novos, bonitos e reuniam-se para falar mal de Portugal com uma grande ternura e dedicação. Quis escrever sobre este tipo de sentimento anti-português e, ao mesmo tempo, sobre a solidão de quem está fora e não quer voltar de maneira nenhuma para Portugal. Alguém cuja única identidade é o passaporte, os sítios por onde se passa, sendo português por esses sítios todos.

Acabou por encontrar uma história real. Como chegou a ela?
Através de um jornal ("Jornal de Noticias"). É a história de um homem que é assassinado e não tem em sua posse documentos, só um passaporte. Em conversas com "contactos" da Judiciaria, acabei depois por inventar esta história de um português que viveu sempre fora de Portugal, que procurou a sua feli­cidade longe, longe. Por outro lado havia a ideia, já antiga, de fazer uma coisa com Brasil dentro. Não só tenho uma relação especial com o Brasil, já ha muitos anos, como tive a sensação de querer fazer algo deste género a primeira vez que cheguei a Manaus para fazer o programa de televisão Avenida Brasil, nos 500 anos da descoberta do Brasil. Subi o Amazonas de barco e quando se sobe a primeira vez é avassalador. Quando se está no meio do rio, há vários pontos em que se olha para a margem direita, vê-se essa margem, mas já não se vê a margem esquerda: é largo, imenso.

E a cidade?
É espantosa para quem chega de barco. Manaus é uma cidade tão grande que ninguém se encontra e ninguém se perde, pois realmente não há nada para perder porque está tudo rodeado de floresta. Uma ilha rodeada de floresta e de agua é Manaus. E é uma cidade onde chegou todo o tipo de gente.

De que género?
Toda a gente. Por exemplo, a comunidade judaica portuguesa no início do século XX cm Manaus era enorme. Os Portugueses que vieram de Mazagão foram para a Amazónia, não para ai exactamente, mas um pouco mais para cima para o Amapá, mas muitos deles também chegaram depois a Manaus. Os libaneses e sírios que foram para Manaus, uma das tradições é fixada pelo MilIon Hatoum, que é, de facto, o grande escritor de Manaus; os índios de Manaus; os Portugueses e os ingleses da borracha. Aquela cidade é fabulosa! Tem o símbolo maior da loucura luso-brasileira que é o Teatro Amazonas, a Ope­ra de Manaus. A única coisa realmente brasileira além das obras de pintura do Crispim do Amaral são as madeiras e nem todas, tudo o resto veio da Europa, os cristais, os tecidos, tudo c europeu! Há toda aquela mitologia do filme com o Klaus Kinski, "Fitzcarraldo", de Werner Herzog e a mitologia de que o Caruso esteve lá. Ele nunca esteve lá! O Teatro Amazonas encerrou depois do ciclo da borracha, já não havia dinheiro, e uma das ultimas pessoas a tocar lá foi o Villa-Lobos. Nos livros falamos daquilo que gostamos.

Pode visitar-se tal como fez o Jaime Ramos no livro?
O Teatro Amazonas está aberto a visitas e tem actividades, concertos. Com a zona franca, Manaus transformou-se numa metrópole onde tudo é possível, desde a maior corrupção, a maior onda de criminalidade. Ali­ás um dos acontecimentos do Iivro — o assassínio daquelas meninas no barco — aconteceu há um ano com deputados e médicos. Ma­naus é um sitio impossível, nunca se encontra ninguém, nunca se perde ninguém. É tudo muito flutuante. O próprio bairro flutuante de Ma­naus é a metáfora da cidade. Tem aqueles sabores — o tucupi, tem aquela poeira da Amazónia, tem o cheiro do rio que as vezes não é agradável, tem os aromas do mercado, das ervas. Por um lado é muito afrodisíaco e, por outro, é muito perigoso, pois nunca se sabe se uma das ervas é maligna ou não. Quem vive em Manaus tem a noção de que só pode sair dali ou de barco ou de avião e de barco a viagem é muito longa. Aquela praça diante do Teatro Amazonas que tem buganvílias é estranhíssima. E a memória dos portugueses, Lisboa teve um rabino que era casado com uma senhora de Manaus.

Quanta ao titulo do Iivro, "Longe de Manaus". Por­quê?
Precisava de um sitio onde um português se refugiasse. Os Portugueses escondiam-se onde? Na Bahia, no Nordeste, porque têm aquela noção dos Mares do Sul. Para qualquer europeu, os mares do Sul, são azuis, claros... É mentira, não são nada disso. Os mares do Sul são horríveis, tem ventanias, são escuros. Basta ler o (Francisco) Coloane, chegar à Patagónia, ao Chile e à Argentina para perceber isso. Encontrei um português que se escondeu em Manaus, mas para fugir para lá ele tinha de ter uma razão qualquer, ou vai para lá fugido, fugido mesmo, ou chega lá através de alguém: foi aí que quis meter os libaneses de Manaus, que eram personagens fantásticos.

Dai a história do delegado Osmar Santos.
Vi uma exposição justamente em Manaus sobre a emigração de árabes, sírios e libaneses para lá e fiquei maravilhado. Além de ser gente muito bonita, manteve as suas tradições e muitos deles, que saíram de Manaus para São Paulo, tornaram-se pessoas importantíssimas. E a memória deles era encantadora. Depois conheci o Milton Hatoum, um dos maiores escritores brasileiros, autor dos livros "Dois Irmãos" e "Relates de Um Certo Oriente" — numa conversa contou-me uma história que era de certo modo a história da família dele, da ida do avô e do pai para Manaus com uma passagem pelo Acre. O Acre antes de ser um estado brasileiro era o território do Acre, foi comprado ao Peru, basicamente. O Acre é onde se cometeram imensos crimes que só dificilmente foram investigados. Aliás, o (jornalista) Zuenir Ventura tem uma história sobre o (seringueiro) Chico Mendes, mas o Acre ainda é mais lon­ge do que se possa imaginar. Aqueles rios estranhos, a floresta, a paisagem aterradora. Também foi muito colonizado por libaneses que iam pelos rios até chegar lá. Este mundo também me interessava. Não como história, mas como paisagem. Tenho a tentação de primeiro procurar a paisagem, o cenário, e só depois escolher a história. Foi sempre assim. E vai voltar a ser assim de novo.

Mas insisto, “Longe de Manaus” porquê?
Porque ha essa sensação de Manaus estar longe de tudo. As personagens estão longe do resto do mundo. Tudo o resto está longe de Manaus. Quando Manaus começa a perder a importância económica no inicio do século XX, com o fim do exclusivo da borracha, ficou perdido e só recuperou com a zona franca que é relativamente nova. A vida das pessoas do Porto, onde se passa parte da história do Iivro, a vida das pessoas de Luanda, tudo está longe de Manaus. Em conver­sa com o (jornalista) Ferreira Fernandes disse-lhe um dia que estava a escrever uma história sobre Manaus. Ele contou-me que a primeira vez que viu Manaus, ele que é de Luanda, pensou: "Isto é Luanda, estou em Luanda!"

O Iivro começa aliás com uma cena de striptease em Luanda. Durante a leitura do Iivro pensamos que a vamos seguir mas...
Aquilo é um plano.

Quem está a ler não sabe.
Depois há um outro plano que se passa numa outra zona qualquer. E a seguir temos planos que também n3o fazem parte da história: os planos da Daniela. São planos, imagens, pedaços de filme.

Quando se acaba de ler o Iivro, pode voltar-se ao principio por se pensar que houve alguma coisa que nos escapou. Quem era aquela mulher da cena do striptease? Vê-se então que era Mara. Mas então , porque é que não sabemos mais sobre isto? Pode ficar a interrogação.
Exacto. Há sempre qual­quer coisa na memória das pessoas que é muito traiçoeira, que se esquece. Isso é um teste também. Esqueces, mas, se tens boa memória, vais lá. É como ver a própria história da Mara. Quando Jaime Ramos, em Manaus, vê aquela fotografia de uma mulher bonita, vestida daquela maneira, com aquele mar azul daquela ilha de Luanda — acontece-me muito vezes essa tentação quando vejo fotografias de há muitos anos, de gente que não conheço, de fazer essa história daquela imagem. Escrevo a partir de fotografias, para descrever o passado procuro uma fonte.

Onde?
Em postais ilustrados, em fotobiografias, em livros ilustrados, em colecções de fotografias de pessoas amigas. A certa altura do livro aparece um retornado a contar na primeira pessoa como é que era a vida no Lobito e em Benguela. Aquelas fotos existem. A personagem diz: "Há tantas pessoas a entrar na agua, só há três pretos e eu conheço-os a todos." É uma foto publicada num livro sobre Angola. Procuro esses materiais dispersos. Ou vou lá, aos sítios, e fotografo.

Uma marca de originalidade deste “Longe de Manaus" é a opção por utilizar a grafia brasileira nos capítulos que se passam no Brasil. Saiu-Ihe assim ou foi premeditado?
Aconteceu por dois motivos. O primeiro foi por uma irritação muito grande contra os Portugueses que acham que são proprietários da língua. Os brasileiros são 180 milhões, fazem o que quiserem da língua portuguesa e têm, feito, felizmente! Queria mostrar que era possível num livro português coexistirem as duas grafias. For outro lado, quando começo a pegar na Daniela fiquei de tal modo apaixonado por ela e pela Helena, que para dar exactamente a imagem que eu tinha da Daniela não a podia pôr a falar português de Portugal. Ela tinha de falar uma outra língua. As próprias enumerações que estão na cabeça dela quando começa a inventariar o passado, tudo aquilo é realmente brasileiro e ela não podia dizer aquilo em português de Portugal. Percebo que alguns leitores ao pegarem no livro sintam estranheza quando a certa altura começam a ver "teto" sem "c"; trema em "sequëncia ", e ainda bem que as pessoas tem essa sensação, porque é uma língua diferente. É impossível falar de comida, de amor, do corpo, das relações afectivas, amorosas em português de Portugal.

Pediu a alguém para corrigir?
Sim, uma pessoa que conheci entretanto, a Patrícia, que me ajudou, foi corrigindo, explicando "isto nós não dizemos assim, dizemos de outra maneira". Por exemplo, a expressão "ir ao cinema" diz-se, mas é mais comum dizer-se "ir no cinema". "Ver um filme" diz-se, mas o mais normal é "assistir a um filme”. Depois há pormenores, mas o grosso eu próprio escrevi. Consigo escrever em português do Brasil sem grandes erros.

Ao mesmo tempo isto e um policial diferente dos outros: tem muitas divagações.
Sempre vivi com esse trauma.

Os leitores habituais do detective Jaime Ramos vão interrogar-se sobre o que está aqui a fazer?
Não, notam que ele envelheceu. Acho que ele se adaptou à idade. É uma personagem com quem eu fiz um contrato no "Morte no Estádio".

Como é isto de ter um personagem que se acompanha, como é que se constrói?
Precisamos de um alter-ego. Para viver uma série de sensações, precisamos de uma personagem. Não é só o Calvin que tem o Hobbes. Na nossa vida também temos vários Hobbes. Não podemos deixar morrer essas pessoas, sob o risco de ficarmos esquizofrénicos. O melhor é encontrar uma personagem para viver isso. Eu sei onde é que ele mora no Porto, na Rua Barão Nova Sintra, sei qual é o café onde ele vai, e isso mantém-se assim. A única pessoa que se esquece da vida do Jaime Ramos é o próprio Jaime Ramos, que nem sabe de que é que a Rosa é professora.
Se por um lado Jaime Ramos tem aquele lado de alter-ego que vive aquelas histórias, por outro é a maneira como eu imagino uma certa pessoa e a construi ao longo de alguns anos. Neste livro, Jaime Ramos encontra uma parte de si. Quando ele se depara com Álvaro Severiano Furtado e diz "este homem não tem biografia, e eu também gostava de ser assim". Descobre esses Portugueses e descobre o seu próprio passado. Porque há também o encontro com o advogado que era seu su­perior hierárquico na guerra na Guiné.

Mas estava a falar de um trauma...
Estava a dizer que sempre tive o trauma das 20 regras para escrever um romance policial do S. S. Van Dine, o criador do detective Philo Vance. No fundo, são as regras do romance policial clássico Ele diz: o narrador do livro sabe tanto como o leitor, não se pode esconder nenhum dado ao leitor, não se pode guardar nada na manga. O investigador não pode ter paixões, nem estados de alma. O investigador é duro ou pelo menos racional, faz a sua própria investigação não está cá com poesias. O crime é um facto. Não há mistérios, não há intervenção de coisas metafísicas. São 20 regras muito precisas. Há uma alteração nesse cânone do policial quando Raymond Chandler escreve o ensaio "The Simple Art of Murder" e muda completamente o sentido da literatura policial. Ou seja, dizendo, a morte é morte, mas a morte tem razões sociais, emocionais, matar não é um divertimento superior. Nós temos um cânone que é o dos policiais clássicos, que são deliciosos, e que têm o crime como um divertimento superior, isto é vamos chegar a, isto por deduções e deduções. E a partir do Chandler e da geração do romance negro americano isso muda muito. Eu sempre vivi com esse trauma do S.S. Van Dine e com aquilo que as pessoas diziam sobre o próprio policial.

Tais como?
As pessoas diziam coisas como: isto não é bem um policial, o policial tem de ser seco e tu não o fazes. Eu também queria assumir claramente, não é que isto não seja um policial, é que se pode fazer um policial de outra maneira, com estados de alma.

Por isso este livro tem no, inicio a frase: “Um romance policial, como se sabe, tem as suas regras. Este não tem."
A mim tanto me fez ser policial como não, é-me completamente indiferente. A ideia de fechar um género entre quatro paredes e muito reaccionária, não faz sentido. O que faz sentido e pegar nas regras e fazer com elas aquilo que nós quisermos. As regras mantêm-se no fundo, estão lá. Ha um crime, há uma investigação, ha um cadáver.

No seu caso há vários.
Ha vários para tornar o cadáver mais barato por livro. (risos). Mas depois como se escreve ou se chega ao processo final, isso é completamente diferente, depende da pessoa e daquilo que se quiser fazer respirar. Depois tem a ver com essa banalização e com esse lugar-comum de que, no policial, as personagens, o meio e o cenário só podem ser negros. O detective tem de ser um pintas, ter aquela linguagem de Lisboa ou do Porto, tem de viver sozinho, ser alcoólico, beber imenso “whisky” e fumar. Isso é uma coisa um bocado desgraçada, no fundo estamos todos a repetir o Dashiell Hammett. Éramos todos Sam Spade ou Mickey Spillane. Isso não funciona. A vida não é assim. Nem os polícias são assim.

Porque é que escolheu o Porto para a cidade do Jaime Ramos, um detective burguês do Porto?
Quando escrevi "A morte no Estádio " que é uma história sobre o Porto não ia pôr um detective de Lisboa. Tirando o França, o detective do Miguel Miranda, que é também do Porto, mas é o maior detective do mundo e é privado, são todos de Lisboa. Este é um polícia, é um burguês, é um tipo que tem o seu café, vive num apartamento que é um quarto-sala, namora uma professora de liceu...

Tem uma obsessão pela sua cozinha.
Há coisas que lhe empresto (risos) que ele não tinha a princípio.

Neste livro só há uma receita.
Neste livro só faz arroz de bacalhau. Mas o próximo livro começa com comida. E há a ideia de publicar para o ano as receitas dos livros de Jaime Ramos. O facto de ele gostar de cerveja, de gostar de ir à pesca, não é o detective pintas. Esforço-me por não repetir clichés do tipo que vai aos bares e se deita às quatro da manhã. Ele gosta de se deitar cedo.

Parte das diligências de Jaime Ramos passam-se ainda em Vila Flor. Outra parte do livro decorre ainda em Cabo Verde, uma história paralela. Há alguma razão para isso?
Para preparar o próximo livro precisava do Corsário (personagem de "Longe de Manaus"). Numa história temos as personagens principais de quem na verdade a história nasce e temos personagens que aparecem à nossa frente, tal como na nossa vida. Temos pessoas com quem vivemos, por quem nos apaixonamos e que são nossos amigos para sempre. E temos outras que passam brevemente pela nossa vida, e as personagens são assim. De repente eu precisava de outra coisa. As pessoas perguntam-me a Daniela aparece porquê? Porque me apaixonei por ela.

Ela é importante para percebermos quem é o homem que vai ao banco.
Por isso mesmo também não teríamos Jaime Ramos em Vila Flor se a Rosa não fosse de Vila Flor. Portanto, as coisas não estão desligadas mas reconheço que há umas que aparecem, que flutuam, há a Daniela, a Helena, o Corsário, a Fátima, Amarante. São coisas. Na nossa vida nem tudo é coerente. Nem tudo é um exercício de geometria.

A seguir vamos para Cabo Verde e depois? Vamos para S. Tomé? Ou será que S. Tomé na literatura portuguesa já está arrumado?
Não, não (risos)

Gostava de perceber se há aqui uma estratégia.
Não tem estratégia. Tem a ver com apetites, porque há dois anos fui a Cabo Verde pela primeira vez. E aconteceu-me a mesma coisa. “Isto dava uma história”, aqui, como cenário. Tenho que me fustigar a mim próprio: “Cala-te, não tens aqui uma história.” Mas obviamente que tenho, tenho ali aquela ilha e depois a ilha em frente que é um colosso. Vou fazer um história em Santo Antão. Os cenários, Mindelo, Santo Antão, e mesmo as cidades, como São Paulo, por exemplo, comovem-me muito.

Não estará a entrar num circulo de onde não poderá sair?
Não, não vou. Mas este é o circulo onde vivo e onde vivem aquelas personagens. Se eu vivo assim porque é que as personagens não hão-de viver assim? E perfeitamente normal, O Jaime Ramos vai ao Brasil. E a primeira vez que ele vai ao Brasil e diz que pensa que vai repetir a primeira viagem de um tio. Ele junta tudo como eu junto tudo. Ele junta a viagem do tio com a sua viagem de natureza profissional. E há cenas que não entraram como nos DVD, onde depois existem as partes dos extras. Sabe em que condições um policia viaja? Quando chega à fronteira tem de tirar a pistola, mostrar, fazer declarações. Há uma cena que escrevi com a partida do Jaime Ramos do Porto, escrevê-la para mini foi hilariante, mas entra no próximo.
Depois tento ao máximo evitar repetir os clichés do meu meio. Já aqui tive uma tentação, mas peço a mim próprio para não meter professores universitários nem jornalistas nos livros.

Mas podemos transpor isso para "só meto ex-colónias”.
Porque me tocou muito a quantidade de pessoas que conhecemos na rua e que têm relação com Angola, Moçambique, não se pode ignorar isso. O meu contacto com África foi todo depois da descolonização. Eu só visitei África quando (Angola, Moçambique...) já eram países. O primeiro país que visitei foi a Guiné e quan­do cheguei lá senti: "Tanto me faz que tenha sido portuguesa como não." A única coisa que para mim foi portuguesa é que acabei por ter de ir ao cemitério dos soldados Portugueses em Bissau. Nessa altura, o (jornalista) César Camacho estava a fazer uma viagem com o (oficial do Exercito] Matos Gomes e falou-me de uma personagem fantástica, é a mulher do "Loureço Mar­ques" que fugiu para a ilha e desapareceu. Há pessoas com vidas extraordinárias ligadas a África. Provavelmente eu escreveria da mesma maneira se tivesse o mesmo fascínio pela Europa de leste, mas tenho este fascínio por África. Não sou um africanista, nem sequer sou um especialista em África, mas é um universo que me seduz muito – tal como o da América Latina. Tive uma proposta divertida de um editor brasileiro para escrever um livro que é um “Crime em Frankfurt” e obviamente vai matar o (escritor) Paulo Coelho. Aí provavelmente escreverei só sobre Frankfurt e sobre a Europa. Mas não! Vou meter um português e um brasileiro e vou destruir isso tudo! (gargalhadas) Até há cidades europeias que adoro, mas não tenho o mesmo apetite.

Entrevista de Isabel Coutinho
in Mil Folhas (suplemento do Jornal “Público”), 30 Julho 2005

20.10.05