"Os clássicos da literatura
têm de voltar à escola"
Viajante, gastrónomo, blogger e portista, Francisco José Viegas é, antes de mais, um cidadão do mundo que desfruta ao máximo do «lado prazenteiro» da vida. Para o director da Casa Fernando Pessoa, é a literatura que «forma gente culta» e esta pode também ser um importante veículo para afastar a «mania facilitadora» que se apoderou do ensino nacional. Sobre os portugueses, o autor de «Longe de Manaus» considera-nos «mesquinhos e invejosos», que desprezamos o património linguístico e que no «jornalismo existem demasiados ignorantes».
Pelas entrevistas que tem concedido, emerge que a escrita, as viagens e a gastronomia, compõem o triângulo de prazeres da sua vida. Como os definiria, isoladamente, utilizando uma escala própria de satisfação pessoal e explicando como estas actividades se podem fundir? Sente-se um privilegiado por ter prazer mesmo quando está a trabalhar?
Sinto-me um privilegiado por poder trabalhar. Essa é a primeira condição. Depois, por poder trabalhar em áreas que aprecio, que mobilizam mais energias pessoais, que me dão prazer. Não nego que houve, ao longo de vinte anos, uma certa insistência, uma teimosia – nem sempre foi fácil conseguir escrever sobre coisas que me dessem assim tanto prazer. Mas é preciso ser teimoso e insistente, foi uma das coisas que aprendi. De alguma maneira, o romance, ou seja, o tipo de ficção que escrevo, permite-me juntar algumas dessas áreas, como a viagem, alguma gastronomia – e um olhar mais prazenteiro sobre a vida. Geralmente, eu tenho receio de que as pessoas confundam aquilo que eu chamo «o lado prazenteiro» com uma busca do prazer a todo o custo, porque não é nada disso que se trata. O prazer de viver, o prazer em si, retira-se de coisas que não são excepcionais nem mobilizam grandes meios ou artifícios: uma pequena viagem, uma tarde, um livro, uma bebida, um fragmento da nossa vida. Nesse sentido não me considerarei nunca, por exemplo no campo da gastronomia, um gourmet. Um gourmet necessita de tempo, de dinheiro e de muitos conhecimentos – e de alguma abnegação. Eu gosto de ser uma pessoa assim, como sou, normal. Retirando prazer do que a vida me dá.
Define-se como «um viajante» e escreve mensalmente na revista «Volta ao Mundo». Qual o local do Globo que mais o marcou? E a viagem com que sempre sonhou mas nunca ousou fazer?
Acho que há dois lugares especiais na minha vida de viajante: toda a América Latina, do México ao Chile, passando pelo Brasil; e partes de África. O Brasil é, provavelmente, um dos lugares que mais me marcou, sobretudo pela sua diversidade. Acho que ninguém pode dizer «este é o verdadeiro Brasil», porque, justamente, não há verdadeiro Brasil. Apesar de ser um país que me desilude frequentemente, com uma classe política indigente e pobre de espírito, com desigualdades sociais gritantes, o Brasil é um país cativante e belíssimo. Depois, África. Mas África tem a ver com as minhas experiências pessoais e com a memória portuguesa de África. Há quem se sinta ligado a ela, e quem a recuse. Eu encontrei histórias fascinantes em África, são elas que me prendem a Moçambique, por exemplo.
Depois de «Longe de Manaus» e das aventuras do inspector Jaime Ramos, acaba de lançar um livro num registo diferente, intitulado «99 cervejas + 1 ou como não morrer de sede no inferno». Trata-se do primeiro guia do género em Portugal. Não é arrojado editar um livro sobre cerveja num país de tradição eminentemente vinícola? Como é que um «contador de histórias» se debruça sobre os vários tipos de cerveja?
A cerveja é uma bebida própria dos países que souberam transformar a agricultura em mais do que uma actividade ligada à sobrevivência, criando processos de fermentação e de transformação do cereal. Só as sociedades sem agricultura não têm cerveja, como os esquimós ou os aborígenes da Austrália. De resto, a cerveja é a bebida alcoólica mais antiga da Humanidade, anterior ao vinho, nascida na Suméria, espalhando-se pelo Mediterrâneo e pela Europa. A ideia de que a cerveja é uma bebida própria do norte da Europa – e que o vinho é do sul – é falsa. Na verdade, nós sabemos hoje que os lusitanos (e sabemo-lo com Estrabão, por exemplo) eram grandes produtores e bebedores de cerveja, reservando o vinho para os momentos especiais. De modo que o livro tem como intenção, igualmente, quebrar alguns mitos em redor da bebida. Diz-se que cerveja é menos nobre do que o vinho, mas a verdade é que a cerveja é ela e a sua circunstância, a sua companhia, a sua qualidade. E há cervejas tão diferentes e tão especiais, que achei que valia a pena tratar um pouco do assunto. De certa maneira, acho que todos nós somos uma espécie de pecadores do Renascimento… Quer dizer, temos interesses muito variados, muito diferentes – e não há mal nenhum em tratarmos cada um deles quando muito bem nos apetecer.
Não podia deixar de abordar uma das suas «paixões irracionais», o futebol. Tal como Miguel Sousa Tavares é portista e vive na capital. Primeiro, perguntava-lhe se o FC Porto vai revalidar o título de campeão em 2006/2007 e depois se acha, tal como Sousa Tavares, que «ser portista em Lisboa é como ser muçulmano na Bósnia»?
Acho que o FC Porto tem condições para ganhar o campeonato. O Sporting é a equipa que melhor joga até agora – mas o FC Porto tem uma equipa fantástica. Falta-lhe um goleador nato, um rebelde criativo. E acho que vamos ser campeões. Ser portista em Lisboa deixou de ser um perigo, como acontecia nos anos setenta e oitenta (não me lembro de ver mais portistas na minha faculdade…) para passar a ser uma curiosidade. E hoje é normal. Espero que seja normal. O futebol, sabe?, devia ser levado menos a sério. Eu comporto-me como hooligan no estádio: grito, entristeço, até insulto, se for preciso. Mas faz-nos falta esse lado selvagem, que deve ser divertido, deve ser até cómico. E deve ser exagerado. Todos precisamos de exagero, de excesso. De obsessões.
Assume ter uma «relação conflituosa» com Portugal, mas regressa sempre à pátria natal. Ouvimos falar em défice económico e de alma e o futebol é o único paliativo para a depressão. Acha que a identidade nacional tem sido beliscada pela conjuntura negativa? Resta-nos algo para além do futebol? Quando é que acha que a «poeira», uma das suas palavras favoritas, vai assentar?
Eu acho que os portugueses têm uma relação difícil com a pátria em tempos normais, quer dizer, em tempo de existência vulgar. A verdade é que ainda não perdemos várias ideias de grandeza e de excepcionalidade. Sentimo-nos bem em festa, durante as euforias do futebol, das exposições universais, por exemplo – mas achamos que o resto, o que vem a seguir, é triste e humilhante. Não devia ser assim. Devíamos, provavelmente, reconhecer que há uma certa grandeza na «aurea mediocritas», na vida de todos os dias – isso significa respeitar a vida quotidiana, enchê-la de referências de qualidade: bons transportes públicos (a questão dos transportes, da mobilidade, é essencial nas grandes cidades), honestidade na administração pública, critérios de exigência e de qualidade em tudo o que é serviço público, exemplos de poupança e de economia real na vida pública, prémios para a invenção e para a criatividade, severidade e muita disciplina em tudo o que é exemplo público. As pessoas gostavam de viver “como na Europa do Norte”, mas ignoram a outra face da moeda, ou seja, o que custa ser cidadão na Europa do Norte. Lá, e eu conheço relativamente esse mundo, as pessoas não vão jantar fora tão frequentemente como em Portugal, não faltam ao trabalho, não se queixam dos impostos, trabalham muito, os estudantes não têm a vida facilitada como aqui, há demasiada exigência. Ganham mais do que aqui. Mas não sei se as pessoas estão dispostas a pagar esse preço. Na nossa Europa do sul há uma maior informalidade, que não existe no norte da Europa; há mais liberdade e menos politicamente correcto. As pessoas têm de optar. Não podem querer o modelo de vida do sul e a remuneração do norte. São estilos de vida diferentes. São modelos económicos diferentes. E depois, deixe-me dizer isto, acho que a questão da auto-estima é falsa. Nós precisamos de esquecer essa coisa ridícula. E precisamos de deixar de nos mortificar, de obedecer ao temperamento oficial… Devemos viver a nossa vida como ela é. Olhe, quer um exemplo? Colombo. Cristóvão Colombo, por exemplo. Quantos historiadores estudam a importância de Colombo ser ou não ser português. Magalhães. Os Corte-Real. Temos uma tradição recente, que é a dos anos setenta, que assenta na ideia do remorso, muito semelhante à do «remorso do homem branco» – desvalorizámos a nossa presença em África, desvalorizámos o nosso carácter aventureiro, desvalorizámos os nossos heróis, os nossos mitos fundadores, as nossas pequenas glórias. Enquanto não dermos a volta a isso, não teremos respeito pela nossa alegria. Nenhuma engenharia financeira nos ajudará a sermos mais felizes. E precisamos de deixar de ser tão mesquinhos uns com os outros, tão invejosos. Precisamos de ser mais livres, mais soltos.
É acima de tudo um homem de comunicação. Também é jornalista, foi director da «Grande Reportagem» e escreve uma crónica semanal no «Jornal de Notícias». É mais um dos que se junta ao coro de desencantados pelo panorama actual do jornalismo nacional?
Não estou desencantado. Acho que há demasiados ignorantes no jornalismo, demasiada gente a escrever mal, muitos lugares-comuns, muita gente sem conhecimentos de história, de civilidade, de ortografia.
Pensa que a concentração dos títulos em grandes grupos económicos desvirtuou a forma de fazer jornalismo?
Os grandes grupos económicos cumprem o seu papel, tentando ganhar dinheiro fazendo jornais, mas precisam de compreender (e aos poucos compreendem-no) que não se podem perder critérios de qualidade.
Ser blogger, é outra das suas facetas. Primeiro o «Aviz», depois «A origem das espécies». Que virtudes e perigos encontra na blogosfera?
As mesmas da vida em geral. A blogosfera mudou a nossa forma de comunicar, de nos informarmos e de participarmos na discussão sobre a vida, a política e a cultura. Acho estranho que haja ainda receios da blogosfera, porque os blogs são fundamentais, hoje em dia, para perceber como pensam os portugueses que pensam. Além do mais, os opinadores dos jornais e das revistas são quase todos eles herdeiros do PREC e do regime – a blogosfera revelou gente que pensava de outra maneira, que escrevia melhor, que pensava melhor. E mostrou que o reino da opinião nos jornais, estava muito pobre.
Foi professsor universitário de estudos portugueses na Universidade Nova e desempenhou o cargo de director da revista «Ler» durante 14 anos. Acha que os portugueses estão sensíveis e despertos para as virtualidades da sua Língua, um dos maiores patrimónios nacionais aquém e além fronteiras?
Não. Não estão sensíveis e desrespeitam muito esse património. O português, aliás, já não nos pertence – já não somos os “donos da língua”. Os brasileiros são 180 milhões a falar a nossa língua. Juntemos os africanos. Temos um património linguístico e literário riquíssimo que andamos a desprezar. Enojam-me os erros ortográficos nas legendas e rodapés televisivos. A linguagem dos políticos, que é pobre e cheia de erros. Faz-me muita impressão a superficialidade com que tratamos a nossa língua.
No seu discurso aquando da entrega do «Prémio Romance e Novela 2006» da Associação Portuguesa de Escritores, alertou para a importância de se ensinar mais literatura nas escolas. Pensa que a Língua de Camões e os autores lusos têm sido desprezados em favor de programas e soluções educativas mais facilitadoras?
Penso exactamente isso e penso que a culpa não é dos professores, que se esforçam muitas vezes por corrigir aspectos degradantes dos programas de ensino do português. Muitos professores de português são autênticos heróis, quando põem as crianças e os adolescentes a ler. Mas o tom, os objectivos e os tiques ideológicos dos programas de Português ou de História, que é um resultado dos anos setenta, tem dificultado muito a vida dos melhores professores, tentando fazer deles personagens medíocres. Sempre separei as duas realidades: o Ministério da Educação e os professores. E acho que a literatura tem de voltar em força às escolas; não a literatura de hoje, apenas. Mas os clássicos. Os clássicos lidos com alegria e criatividade. Cesário, o barroco, Gil Vicente, Camilo, Camões. Tudo isso. Lidos, sem cartilha ideológica e sem preconceitos. Lidos por prazer. É assim que se forma gente culta, colocando-a em contacto com a cultura. Essa mania facilitadora tem vindo a transformar o ensino numa coisa classista e boa para as elites – que têm acesso aos autores e à cultura fora da escola.
A polémica em torno dos exames voltou a semear a discórdia na educação. Os resultado foram desastrosos. Os maus alunos de hoje serão os políticos e os gestores do amanhã. Teme que esta geração mantenha os tiques de «irresponsabilidade», como diz, que os sucessivos governantes têm patenteado nas últimas décadas?
Na verdade, temo um pouco. Basta comparar com os resultados do resto da Europa. As pessoas dizem-me que não interessam apenas os resultados – concordo, mas o que é que temos no final senão resultados? Acho que teremos de ser mais exigentes, mais responsáveis. Sou pela responsabilização dos professores e pela avaliação permanente e rigorosa dos técnicos ministeriais que transformaram os programas e métodos de ensino numa balbúrdia. Toda a gente culpa os professores, mas poucos apontam o dedo à ilustre geração de técnicos ministeriais que agiram em roda livre, espalhando mediocridade, irresponsabilidade e maus resultados por anos e anos de impunidade. Quem avalia essa gente? Quem os responsabiliza?
A ministra da Educação tem sido atacada por todos os lados. Concorda que quando alguém é impiedosamente criticado por tudo e por todos, é porque está a reformar conceitos e mentalidades e a mexer com os interesses instalados?
Acho que o princípio pode ser válido neste caso e acho que a ministra tem conseguido mexer com o que chama «interesses instalados». Falta agora melhorar a qualidade do ensino e a qualidade de vida dos professores, dignificar a profissão, incentivar a formação profissional, deixar de tratar os professores como profissionais de uma profissão qualquer. Mas é preciso que eles se comportem como tal. E não, não concordo em absoluto com a interferência dos pais no sistema de ensino e na avaliação dos professores. A escola pública deve ser, para os alunos, também um espaço de liberdade em relação à família e à sua intimidação. Na escola devem ser avaliados segundo os critérios da escola. Misturar escola e família deu sempre resultados pobres e acabou com a independência de critérios da escola e dos professores. Uma balbúrdia. Aliás, os pais nem sequer devem partilhar o mesmo espaço dos alunos na escola. É bom para os alunos e bom para os pais. Mas os critérios terão de ser mais exigentes.
Nuno Dias da Silva