VERGÍLIO FERREIRA. Melo/Gouveia, 1916 - Lisboa, 1996
A neve - que virá a ser um dos elementos fundamentais do seu imaginário romanesco - é o pano de fundo da infância e adolescência passadas na zona da Serra da Estrela. Aos dez anos entra no seminário do Fundão, onde esteve seis anos - Manhã Submersa será a catarse dessa estada. Licenciou-se em Filologia Clássica em Coimbra (1940). Na sua vida de professor liceal há dois momentos fundamentais: a sua estada em Évora (1945-1958) - que entrará para o nosso imaginário através de Aparição - e a sua vinda para Lisboa (1959), onde ensinou no Liceu Camões até à sua reforma. A primeira fase do seu percurso romanesco, agora retirada da edição da Obra Completa, enquadra-se no neo-realismo então vigente. Ainda assim, Vagão J (1946) opera já uma pequena "revolução" formal. Mas foi uma revolução sem consequências: o movimento neo-realista passou-lhe ao lado, e o autor, perante a incompreensão da crítica, recuou e só viria a reincidir muito mais tarde. Com Mudança (1949) começa V. F. a conquistar a sua voz própria. Aliás, em maior rigor, dever-se-ia dizer que é a voz própria que começa a conquistar o seu autor. De facto, Mudança estava arquitectado para ser um romance neo-realista exemplar - e em muitos aspectos é-o; mas é também outra coisa, que posteriormente se veio a interpretar como sendo a deslocação do neo-realismo para o existencialismo. Tal deslocação ter-se-lhe-á imposto inconscientemente no processo de escrita, sobretudo no tratamento do tempo e da figura da infância. Na velocidade do tempo que estrutura o romance - e que decorre do modo de representação neo-realista: materialismo histórico e materialismo dialéctico -, a figura da infância, enquanto queda para o passado - e queda tanto mais desamparada quanto esse passado não é apenas uma memória mas sobretudo o sem-fundo que fecha e vela o próprio sentido do nosso trânsito pelo tempo -, a figura da infância introduz a desaceleração que toda a hipótese de um sentido arqueológico introduz. Não significa isso que essa atenção ao mais original solucione os problemas de sentido - ela desloca apenas as coordenadas da procura. Mas com esse movimento transforma-se também o modo de representação. É já de uma forma deliberada que V. F. se distancia do neo-realismo nos romances escritos antes de Aparição (1959) mas só publicados depois deste. Em Apelo da Noite (1963) reivindica-se, face ao homem de acção, o "crime de pensar"; em Cântico Final (1960) é a arte, como encontro de um "mundo original", de um sagrado ou absoluto agnóstico, que se furta a qualquer compromisso ideológico. Mas é Aparição - que juntamente com A Sibila (1953) de Agustina Bessa-Luís funda o romance português contemporâneo - que imporá o seu universo romanesco, seja naquilo a que se chamou, não sem verdade mas com alguma pressa reducionista, o seu existencialismo, seja no seu estilo ensaístico ou filosofante. Tentando descrever a experiência, no limite inenarrável, do aparecimento do eu a si próprio, e circunscrevendo-a dentro de uma problemática decididamente metafísica e existencial, Aparição é o limiar de uma agónica, mas sempre deslumbrada interrogação sobre a condição humana. Estrela Polar (1962) e sobretudo Alegria Breve (1965), onde o pathos da sua escrita atinge o ponto de máxima exacerbação mas também de máxima perfeição, além de aprofundarem e completarem a temática de Aparição, introduzem um experimentalismo que terá larga descendência na nossa ficção. A partir de Nítido Nulo (1972) o tom da sua obra começa a ser matizado pela ironia. É uma ironia que vem daquilo que o desgaste ensina. E o que ele ensina é que toda a verdade se esvazia, toda a evidência se torna opaca, todas as ideias pesam para o lado da morte. O pathos até aí predominante era o tom de quem falava do interior de uma evidência estética, de uma Stimmung umbilical. Nunca em V. F. uma árvore provoca náusea ou uma praia com sol induz um crime absurdo. Se há náusea (mas praticamente não a há) ou absurdo (este sim, mais visível), eles não começam logo na facticidade do mundo mas somente na condição humana em si mesma. O mundo apenas é, experienciá-lo esteticamente é já um limiar de sentido. Daí que os narradores vergilianos se sintam tentados a configurá-lo como uma verdade, existencial e não-sistemática, é certo, mas suficientemente segura para se afirmar contra todas as ideologias. Ora, o que acontece no "niilismo activo" de Nítido Nulo, no seu "morrer tudo", é que o tudo envolve também esta hipótese de verdade que os narradores anteriores utilizavam como escudo no combate cultural. O deslizar insensível da aisthesis para o logos é agora difícil, e sê-lo-á cada vez mais. Por isso os romances se começam a distribuir por dois espaços-tempo: um passado onde decorre o diferendo ideológico-cultural, diferendo não só incomensurável como, em última instância (revelada por aquilo que o desgaste ensina), inútil; e um presente de pura afirmação de ser. O primeiro pólo perderá progressivamente a sua capacidade de engendramento narrativo, o combate que nele se desenrola é apenas o ruído do mundo, não uma alínea de qualquer história teleologicamente configurada - daí a paralisia da história em Signo Sinal (1979). O segundo pólo, impossibilitado agora de funcionar como "fundamento mítico" de uma macro-narrativa, apresenta-se como uma espécie de justaposição de haikus, de nós de revelação que não constroem o "sentido de um final" mas uma litania de apaziguamento, uma pietas para com aquilo que mais primordialmente somos - um sujeito-casa atravessado por tudo o que vem de todos os pontos cardeais, e todavia lateral a essas múltiplas orientações, sempre não-sabendo, como em Para Sempre (1983) ou nas séries de Conta-Corrente (1980 a 1992). É este não-saber que obriga V. F. ao continuar da escrita e faz com que os narradores vergilianos envelheçam como o seu autor. Envelhecer, por exemplo, é passar de filho a pai. De Até ao Fim (1987) a Cartas a Sandra (1996), o narrador, entre outras coisas, é um pai a quem o filho morre. O que morre na morte do filho é aquela força que não suporta a suspensão da história e se auto-destrói na procura da resposta que não há. Poder-se-ia mesmo dizer que a morte do filho é a prova por absurdo de que a lateralidade axiológica em que se coloca o pai não é simplesmente a desistência do cansaço mas a sabedoria da suplementaridade, seja a do puro possível da verdade branca do mar que move Até ao Fim, seja a da ironia dos contrafactuais ontológicos que se experimenta em Na Tua Face (1993). Envelhecer é também passar da despesa do tempo à sua reinvenção no absoluto da memória. Mas esta lição (ou condição) proustiana tem em V. F. as condicionantes contemporâneas de uma sociedade tardo-capitalista, aquela em que a redescrição metafórica do que foi não pode já competir com os meios tecnológicos da representação (cinema, tv, vídeo, etc.), e por isso constrói a afectividade do acontecimento puro: "Não bem o seu corpo esbelto como um voo de ave, mas só esse voo. Não bem a sua juventude eterna mas a eternidade. Não o gracioso dela mas a graça." (Em Nome da Terra, 1990). Claro que há ainda romance, e até na sua dimensão mais consensual e acidentalmente romanesca, que é a da história de amor. Mas se, na sequência da tradição, também aqui o amor é aquilo que só se sabe depois, diferentemente dela, este depois não é a origem reencontrada mas um frágil presente que se sustenta apenas da escrita do nome amado, como em Cartas a Sandra. Neste presente, que é a perda serena de todas as estórias, desenha-se com nitidez a dificuldade contemporânea do fazer sentido. É dessa crise (de cultura e de civilização), das suas várias alíneas polemizantes (marxismo, estruturalismo, filosofia da linguagem), mas também daquilo que cria a esperança de um depois dela (a arte, os autores que se amam, a insistência do pensamento), que falam os inúmeros ensaios que V. F. também escreveu, com muito particular acerto Carta ao Futuro (1958), Invocação ao Meu Corpo (1969) e Pensar (1992).
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. IV, Lisboa, 1997