11.8.06

Ficar de fora?
Vasco Pulido Valente

Ontem a polícia inglesa impediu um atentado, que teria morto centenas de pessoas, que viajavam inocentemente de Inglaterra para a América. A ideia era fazer explodir em voo um número ainda indeterminado de aviões. Foram presos 21 indivíduos, mas com certeza escaparam alguns. Para começar, é bom perceber que uma operação desta envergadura não se improvisa. Exige um conhecimento técnico avançado, liberdade de movimentos, muito dinheiro e uma extensa rede de cumplicidades. Mais do que isso, precisa para se desenvolver de uma atmosfera favorável. O Ocidente, no caso a Inglaterra, oferece tudo isto aos terroristas. Respeita o seu direito à cidadania, protege a propagação de uma doutrina de intolerância e ódio e não pune, como devia, o incitamento à violência. Não estamos perante vítimas sem defesa de uma "globalização" cruel. Estamos perante gente sofisticada, que o Ocidente educou e deixou crescer.
O fracasso da invasão do Iraque provocou, naturalmente, uma contra-ofensiva xiita. No próprio Iraque, no Irão e no Líbano, essa ofensiva paralisou o Ocidente e forçou Israel a intervir. A farsa das negociações, com a França ou sem a França, presume que a guerra com o Hezbollah pode ser localizada e contida. Não pode. Por um lado, qualquer trégua ou interposição internacional só favorece o Hezbollah, que terá tempo de recuperar e continuará fatalmente a receber armas. E, por outro, o mundo muçulmano não vai ignorar a manifesta fraqueza política e militar da Inglaterra e da América. No Afeganistão os taliban voltaram. A boa-vontade do Paquistão arrefeceu. Há sinais de confluência do terrorismo xiita e do terrorismo sunita. E o ataque, planeado em Londres, mostra até onde o islão se dispõe a ir.
Infelizmente, o homem médio da Europa e mesmo da América não acredita na realidade de um islão agressivo. A tese oficial da "minoria extremista", que a grande e virtuosa maioria muçulmana condena, encoraja a complacência e o desinteresse. Tirando o preço da gasolina, quem se importa com as querelas do Médio Oriente e do Afeganistão ou com o que dizem e não dizem em Hamburgo ou em Londres clérigos furibundos, de turbante e barba? Mas, desta vez, não basta não ver e não ouvir. O Ocidente perdeu a iniciativa e os foguetões do Hezbollah, que chegam a Haifa, também chegam a Inglaterra em forma de bomba. Não há maneira de ficar de fora.
Um mundo enlouquecido
José Miguel Júdice

O mundo está cada vez mais louco, o que não significa - infelizmente - que esteja a ter cada vez mais graça. Os exemplos abundam e muitos deles são bem mais sintomáticos e graves do que o caso que vos trago para leitura de férias. Mas, por vezes, vale a pena usar para reflexão situações menos relevantes, pois desse modo a ilustração desejada passa com mais facilidade.
Somerset Maugham escreveu um dia, provocatoriamente - pois eram tempos de acesa dominância da teoria da luta de classes como explicação para a evolução histórica -, que a grande divisão da humanidade era entre os que tomavam e os que não tomavam banho matinal. Se escrevesse no nosso tempo, provavelmente afirmaria que a grande tensão é entre os fumadores e os não fumadores. Ou melhor, entre fanáticos que transformam o tabaco na razão de todos os males e os que ousam exercer a sua liberdade saboreando um cigarro ou um charuto.
Aflorações deste fanatismo fundamentalista surgem regularmente. As mais recentes são, curiosamente, contraditórias. No famoso e iconoclasta Fringe Festival de Teatro de Edimburgo, uma peça centrada em Winston Churchill teve de ser representada sem o conhecido e icónico charuto, por causa de uma lei que impede que se fume em lugares públicos. Mas, por outro lado, a Comissão Europeia veio afirmar que é "uma discriminação ilegítima, politicamente inaceitável" que empresas recusem empregar quem tenha o hábito ou o gosto de fumar.
Tudo isto me parece supinamente ridículo e disparatado. Não sou fumador; mas, como disse a outro propósito Kennedy ("Ich bin ein Berliner"), eu sinto-me fumador de cada vez que uma lei estúpida impede a natural fruição do que é assumido como um prazer ou, pelo menos, uma decisão individual. Eu sei que a liberdade de cada um deve terminar onde começa a liberdade dos outros; por isso, concordo que se não possa fumar em aviões, por exemplo. Por isso, aceito com naturalidade que em espectáculos teatrais a assistência não deva fumar, comer, ter relações sexuais (ou simulá-las...), beber cerveja, cantar, agredir os vizinhos, berrar.
O absurdo é que todos esses actos, que os espectadores não devem fazer, são praticados - quando o enredo o justifica - pelos actores em cena. Excepto fumar, ficou agora a saber-se. Não se pode fumar em cena, mesmo que assim se destrua toda a coerência artística da peça, a simbologia do personagem, a lógica imanente ao enredo. Para mim, isto é pura e simplesmente censura. E se hoje é o tabaco, amanhã com a mesma lógica pode ser qualquer coisa que desagrade a quem mande. Podemos acabar a aturar uma lei que impeça actores e actrizes de representar com indumentárias reduzidas, dizendo certas palavras, exprimindo ideias ou sentimentos proibidos. E desse modo se destroem séculos de luta pela liberdade da criação artística!
O disparate é ainda maior se trouxermos à colação a outra história, que felizmente - pelo menos por agora - acabou bem. Realmente, não se consegue entender como é possível proibir Mel Smith de interpretar Churchill fumando um charuto e se não permite que seja recusado emprego a quem fume. O argumento subjacente a este tipo de insensatas proibições é a saúde pública (quem fuma terá mais probabilidade de adoecer), a publicidade (se não se autorizar a publicidade do tabaco o consumo diminuirá) e o incómodo causado aos que não fumam.
Estes intenções e argumentos - cuja razoabilidade ou rigor não é aqui o local nem o momento para discutir - podem ser concretizados de formas ponderadas e equilibradas: pela pedagogia das entidades públicas, pelas restrições ou regras limitativas à publicidade, pela criação de espaços reservados para fumadores. O que estou a estigmatizar não é, portanto, a existência de regras que ninguém com sensatez rejeita. Do que se trata é atacar os que pretendem levar tais regras a extremos absurdos e desnecessários, em nome da "political correctness", desse modo se lesando direitos como são o direito à cultura, à verdade histórica e ao emprego. Mas, se o fundamentalismo tiver de triunfar, sempre será possível dizer que é menos lógico e adequado proibir um charuto na peça Allegiance, Winston Churchill and Michael Collins do que seria permitir não contratar um fumador por esse "horrível" motivo.
Mas o que tudo isto tem de mais preocupante é que as sociedades modernas - que legislam de forma tenaz e radical contra o tabaco e incomodam pacíficos fumadores - convivem tranquilamente com a extrema miséria, com as mais abjectas e sanguinárias ditaduras, com a mutilação dos órgãos genitais de mulheres, com chacinas em massa de populações, com doenças endémicas como a malária a que não destinam recursos e que dizimam populações inteiras, com penas degradantes e desumanas como as que ainda se aplicam em certos países muçulmanos, como a pena de morte.
Por isso é que concluo que o mundo está louco. Como uma vez disse o meu saudoso amigo Francisco Lucas Pires, um avião fez uns disparos sobre um quartel e como resposta nacionalizaram a banca. Esta tendência para a insensatez e para o totalitarismo do pensamento único continua a crescer e temo que não fique por aqui. Hoje é o tabaco, amanhã será qualquer outra coisa. E, sempre, serão coisas muito menos merecedoras de intervenção dos Estados e de coragem de punir do que são os exemplos que atrás referi, podendo seguramente apresentar muitos mais.
O que afinal significa tão-somente que a matriz das sociedades modernas passa pela criação de temas tolos que são hipostasiados e servem para simular poder e energia, e também para com isso evitar mostrar poder e energia (e já agora coragem) para ser radical e exigente em relação aos verdadeiros horrores do nosso tempo. Vamos indo assim. Mas vamos em direcção a um abismo.