11.8.06

Um mundo enlouquecido
José Miguel Júdice

O mundo está cada vez mais louco, o que não significa - infelizmente - que esteja a ter cada vez mais graça. Os exemplos abundam e muitos deles são bem mais sintomáticos e graves do que o caso que vos trago para leitura de férias. Mas, por vezes, vale a pena usar para reflexão situações menos relevantes, pois desse modo a ilustração desejada passa com mais facilidade.
Somerset Maugham escreveu um dia, provocatoriamente - pois eram tempos de acesa dominância da teoria da luta de classes como explicação para a evolução histórica -, que a grande divisão da humanidade era entre os que tomavam e os que não tomavam banho matinal. Se escrevesse no nosso tempo, provavelmente afirmaria que a grande tensão é entre os fumadores e os não fumadores. Ou melhor, entre fanáticos que transformam o tabaco na razão de todos os males e os que ousam exercer a sua liberdade saboreando um cigarro ou um charuto.
Aflorações deste fanatismo fundamentalista surgem regularmente. As mais recentes são, curiosamente, contraditórias. No famoso e iconoclasta Fringe Festival de Teatro de Edimburgo, uma peça centrada em Winston Churchill teve de ser representada sem o conhecido e icónico charuto, por causa de uma lei que impede que se fume em lugares públicos. Mas, por outro lado, a Comissão Europeia veio afirmar que é "uma discriminação ilegítima, politicamente inaceitável" que empresas recusem empregar quem tenha o hábito ou o gosto de fumar.
Tudo isto me parece supinamente ridículo e disparatado. Não sou fumador; mas, como disse a outro propósito Kennedy ("Ich bin ein Berliner"), eu sinto-me fumador de cada vez que uma lei estúpida impede a natural fruição do que é assumido como um prazer ou, pelo menos, uma decisão individual. Eu sei que a liberdade de cada um deve terminar onde começa a liberdade dos outros; por isso, concordo que se não possa fumar em aviões, por exemplo. Por isso, aceito com naturalidade que em espectáculos teatrais a assistência não deva fumar, comer, ter relações sexuais (ou simulá-las...), beber cerveja, cantar, agredir os vizinhos, berrar.
O absurdo é que todos esses actos, que os espectadores não devem fazer, são praticados - quando o enredo o justifica - pelos actores em cena. Excepto fumar, ficou agora a saber-se. Não se pode fumar em cena, mesmo que assim se destrua toda a coerência artística da peça, a simbologia do personagem, a lógica imanente ao enredo. Para mim, isto é pura e simplesmente censura. E se hoje é o tabaco, amanhã com a mesma lógica pode ser qualquer coisa que desagrade a quem mande. Podemos acabar a aturar uma lei que impeça actores e actrizes de representar com indumentárias reduzidas, dizendo certas palavras, exprimindo ideias ou sentimentos proibidos. E desse modo se destroem séculos de luta pela liberdade da criação artística!
O disparate é ainda maior se trouxermos à colação a outra história, que felizmente - pelo menos por agora - acabou bem. Realmente, não se consegue entender como é possível proibir Mel Smith de interpretar Churchill fumando um charuto e se não permite que seja recusado emprego a quem fume. O argumento subjacente a este tipo de insensatas proibições é a saúde pública (quem fuma terá mais probabilidade de adoecer), a publicidade (se não se autorizar a publicidade do tabaco o consumo diminuirá) e o incómodo causado aos que não fumam.
Estes intenções e argumentos - cuja razoabilidade ou rigor não é aqui o local nem o momento para discutir - podem ser concretizados de formas ponderadas e equilibradas: pela pedagogia das entidades públicas, pelas restrições ou regras limitativas à publicidade, pela criação de espaços reservados para fumadores. O que estou a estigmatizar não é, portanto, a existência de regras que ninguém com sensatez rejeita. Do que se trata é atacar os que pretendem levar tais regras a extremos absurdos e desnecessários, em nome da "political correctness", desse modo se lesando direitos como são o direito à cultura, à verdade histórica e ao emprego. Mas, se o fundamentalismo tiver de triunfar, sempre será possível dizer que é menos lógico e adequado proibir um charuto na peça Allegiance, Winston Churchill and Michael Collins do que seria permitir não contratar um fumador por esse "horrível" motivo.
Mas o que tudo isto tem de mais preocupante é que as sociedades modernas - que legislam de forma tenaz e radical contra o tabaco e incomodam pacíficos fumadores - convivem tranquilamente com a extrema miséria, com as mais abjectas e sanguinárias ditaduras, com a mutilação dos órgãos genitais de mulheres, com chacinas em massa de populações, com doenças endémicas como a malária a que não destinam recursos e que dizimam populações inteiras, com penas degradantes e desumanas como as que ainda se aplicam em certos países muçulmanos, como a pena de morte.
Por isso é que concluo que o mundo está louco. Como uma vez disse o meu saudoso amigo Francisco Lucas Pires, um avião fez uns disparos sobre um quartel e como resposta nacionalizaram a banca. Esta tendência para a insensatez e para o totalitarismo do pensamento único continua a crescer e temo que não fique por aqui. Hoje é o tabaco, amanhã será qualquer outra coisa. E, sempre, serão coisas muito menos merecedoras de intervenção dos Estados e de coragem de punir do que são os exemplos que atrás referi, podendo seguramente apresentar muitos mais.
O que afinal significa tão-somente que a matriz das sociedades modernas passa pela criação de temas tolos que são hipostasiados e servem para simular poder e energia, e também para com isso evitar mostrar poder e energia (e já agora coragem) para ser radical e exigente em relação aos verdadeiros horrores do nosso tempo. Vamos indo assim. Mas vamos em direcção a um abismo.