5.12.06
Mim ser bom pessoa
Vasco Graça Moura
(Publicado no Diário de Notícias em Agosto de 2005)
As línguas, tal como as nacionalidades, as identidades, os seres humanos, as artes e muitas coisas mais, nunca foram entidades comandadas por uma racionalidade estrita ou por uma lógica sem falhas. Entre nós, já Camilo Castelo Branco ironizava, há bem mais de um século, a propósito, salvo erro, do jovem Joaquim de Vasconcelos, que, regressado da Alemanha, propunha que se dissesse “estejai”, em vez de “estai”.
Vem isto a propósito do livro A Língua Portuguesa em Mudança, organizado por Maria Helena Mira Mateus e Fernanda Bacelar do Nascimento (Caminho, 2005). É uma útil investigação sobre a maneira como a língua falada e escrita na comunicação social pode condicionar certas tendências do português que falamos.
Maria Helena Mira Mateus (MHMM), por quem tenho grande consideração e estima pessoais, assina uma densa introdução, “A mudança da língua no tempo e no espaço”, cujas últimas páginas, todavia, me deixam muito apreensivo. Aí, depois de postular a necessidade de uma norma-padrão, “como referência da produção linguística e como garante da aceitabilidade de um certo comportamento no contexto sócio-cultural em que estamos inseridos”, da qual “a escola é especial depositária” e que tem “justificações sócio-políticas e culturais, de carácter pedagógico e comunicativo”, MHMM não encontra solução para as dificuldades de definição dessa norma-padrão, de modo a ser possível circunscrever o que é “correcto” e o que é “incorrecto”.
E passa a imputar a “uma alta percentagem de subjectividade” a condenação de certas construções ou formas lexicais. É esse o primeiro passo de neutralização da própria norma-padrão cuja necessidade e cuja defesa julguei entrever algumas linhas antes. Imputar à subjectividade o que decorre de um conjunto de factores independentes da lógica, tem como efeito desvalorizar, precisamente, a norma-padrão.
Mas meu alarme vai mais longe: quando MHMM considera como “alternâncias possíveis”, por ocorrerem “com frequência” e se justificarem “linguisticamente” formulações como “a maioria dos estudantes passaram no exame”, ou “o prédio que o Paulo vive é moderno”, ou ainda “O autor que eu mais gosto é Aquilino”.
Na mesma linha, são em seguida formuladas algumas interrogações, para as quais a rejeição de uma auctoritas que possa decidir sobre a correcção à luz da norma-padrão acaba, em última análise, por abrir a porta às mais bizarras permissividades. Por exemplo, “há-dem”, quanto a “hão-de”, “pensar de que” por “pensar que”, “houveram muitos acidentes”, por “houve muitos acidentes”…
E a autora pergunta-se “como saber o que se pode aceitar e o que se deve reprovar?”. Compreende-se a angústia da linguista ante uma questão a que a sua ciência não dá resposta. Mas isso não deveria levá-la, nem a admitir aberrações da nossa língua, como as exemplificadas, nem a invocar mutações socioculturais lá, onde a única explicação é o falhanço calamitoso da escola.
Sem ser linguista, penso que o grande problema está em haver um sector da Linguística que parece preocupar-se apenas com aspectos de eficácia comunicacional e mais nenhuns. Será a língua, como instrumento de conhecimento e apreensão do mundo, irisado de uma multiplicidade de valores afectivos, estéticos, sedimentados pela memória e pela história, pelo uso transgeracional, pelos autores, algo de que se considera poder fazer tábua rasa?
Aplicando justificações muito próximas das que leio em MHMM, eu posso afirmar que está bem (salvo seja!) uma frase como “mim ser bom pessoa”.
Em primeiro lugar, porque o destinatário da mensagem perceberá perfeitamente o que eu quero dizer, logo o nível estritamente comunicacional está alcançado.
Em segundo lugar, porque posso considerar que a formulação se limita a ser elíptica quanto a um enunciado de correcção indiscutível: (no que a) mim (respeita, considero) ser bom (enquanto) pessoa.
Como não será de admirar que a comunicação social um dia destes desate a brindar-nos com pérolas destas, é evidente que não se pode aceitar, ao contrário de MHMM, que “a norma portuguesa dotada de maior vitalidade e capacidade de fazer adeptos é a que transmitem os jornais, a rádio e a televisão”. Norma???
Bem sei que MHMM diz que não podemos aceitar este conceito sem critério, mas a verdade é que tal critério se dilui na nebulosidade com que é tratada a norma e assim entramos num círculo terrivelmente vicioso e, o que é pior, num ciclo grotescamente viciado…
4.12.06
2. A partir desse gesto de apropriação (porque o é), a TLEBS passou a dever (emprego o termo de forma ponderada) ser discutida por todos os que são agentes, intervenientes e interessados no ensino da disciplina do Português no Ensino Básico e Secundário, e não apenas por linguistas. Porque o Português do EBS não é nem pode ser concebido (gostaria tanto de reforçar esta afirmação!) como domínio único e especializado da Linguística.
3. Que alguns (sublinho alguns) linguistas confundam Português com apenas Língua Portuguesa, e que além disso considerem que sobre esta apenas se podem pronunciar os "técnicos da língua" que a Linguística formaria, como tem sido várias vezes repetido neste debate, apenas atesta a absurda redução (e reacção) tecnocrática que afecta alguns linguistas, mas que qualquer reflexão ponderada e séria manifesta como capciosa. Quanto a isto, estamos conversados.
4. Como mãe de crianças que frequentaram e frequentam ainda o EBS, e como pessoa que obteve na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde lecciono, uma formação específica em Linguística que, quero crer (em benefício de antigos mestres e actuais colegas), é superior à da generalidade de outras formações em diferentes áreas do saber, não só me considero habilitada a pronunciar-me sobre um instrumento que afectará a relação dos meus filhos com a língua que é a sua (porque se não afecta, então é inútil), como penso também que tenho até esse dever - mesmo quando (e precisamente porque) a minha visão é complementar da visão tecnicista (mesmo, convenhamos, de alguns pesadelos tecnicistas, de que darei apenas um ou dois exemplos) de que a TLEBS enferma.
5. Apenas alguns exemplos, que estão efectivamente na TLEBS (e até estaria eventualmente disposta a admitir que poderiam estar numa TL que não tivesse cometido o gravíssimo erro de não se saber distinguir de uma terminologia dirigida a um conjunto de graus de ensino que começa aos 6 e acaba aos 18 anos). Vejam-se por exemplo as especificações dadas para a formação de certas palavras por derivação (adjectivo relacional, adjectivo de possibilidade, nome agentivo, nome colectivo, nome de acção, nome de qualidade, verbo causativo, verbo incoativo/inceptivo). A pergunta central, no quadro de uma terminologia para o EBS, é: quem deverá saber tudo isto? Os docentes? Os alunos? Quais? Será este saber algum dia testado em exame nacional (o que o transformaria em virtualmente obrigatório)? Ou efectivamente, como se diz, em comentário à TLEBS, no site do Ministério da Educação, é deixado aos "docentes no terreno" latitude decisória (qual?) para "aplicar" esta terminologia, consoante o Programa? E se um docente, ou um grupo de docentes, entender que é isto que os alunos devem saber? Outro exemplo, dentro daquilo que aprendemos como género. O nome uniforme passa a ter de ser descrito de acordo com a seguinte terminologia: epiceno, sobrecomum, comum de dois. Complicações inúteis, para os alunos do EBS (é deles que estamos a falar): o "aposto" passa às seguintes categorias: "modificador nominal do nome apositivo", "modificador adjectival do nome apositivo", "modificador preposicional do nome apositivo" e "modificador frásico do nome apositivo". Mas estes são apenas alguns exemplos, embora esclarecedores.
6. Um dos efeitos mais perversos deriva do argumento, várias vezes apresentado, de que a TLEBS não é perfeita ainda (ainda?), e de que está a ser alvo de alterações. Algumas delas são indicadas no próprio site oficial do ME, e dou apenas um exemplo, cuja seriedade julgo não ter sido devidamente sublinhada, nas suas implicações. É que a meu ver infinitamente mais grave do que os exemplos atrás dados é o que se passa (o que se está a passar) com o conceito de "oração", substituído pelo não-coincidente (veja-se a sua definição) conceito de "frase". No site do ME, num dos documentos relacionados com a TLEBS, afirma-se que se pondera agora a reintrodução do conceito, que o ano passado foi excluído, de "oração". Não é isto sinal de precipitação e falta de ponderação na forma como a TLEBS foi implementada? Que tal um aluno a quem foi ensinado, até ao ano passado, que havia orações; que este ano está a aprender que deixaram de existir; e que talvez para o ano volte a aprender que afinal regressaram? É isto sinal de reflexão ponderada, pelas implicações que tem, inclusivamente nos manuais escolares, que correm o risco de ser hoje publicados para daqui a seis meses estarem desactualizados? E os pais? Terão de comprar manuais diferentes de cada vez que a TLEBS resolver introduzir uma alteração a algo que acabou de entrar em vigor? Ou tais alterações, sendo necessárias, não serão implementadas por razões económicas, que são sempre as piores razões neste domínio?
7. A partir do conjunto dos elementos aduzidos, e outros que lhes poderia acrescentar (mas não vale a pena), não posso deixar de concluir como segue: a TLEBS manifesta uma inexplicável (e inaceitável, quando se trata de perceber que ela afecta dezenas, centenas de milhares de crianças e jovens) precipitação na forma como foi concebida e aplicada; a TLEBS manifesta uma míngua de bom-senso, ao confundir uma Terminologia Linguística com uma TL para o Ensino Básico e Secundário; a TLEBS manifesta uma mais do que criticável aceitação de que o terreno da experimentação aplicada é a realidade escolar universal, que está assim sempre concebida sob o signo da flutuação, mais ou menos insensata; finalmente, da TLEBS (e das discussões a seu propósito) se infere a terrível confusão, que ela permite, entre Português, Língua Portuguesa e perspectiva linguística da Língua Portuguesa - confusão extremamente grave e com consequências redutoras, e por isso empobrecedoras, da concepção daquilo que o Português é: muito mais do que apenas a (importante) perspectivação linguística que integra, mas a que felizmente não se reduz.
[Professora de Literatura, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa]
Maria Helena Mira Mateus
A terminologia linguística que está neste momento em experiência e em revisão tem sido motivo de muitas tomadas de posição públicas, artigos, abaixo-assinados e muita irritação. Certamente, as pessoas, "famosas" ou não, que se pronunciaram sobre a questão não sabem do que estão a falar, tantas e tão ingénuas são as afirmações erradas. Existem os erros de base e os erros de pormenor. Vamos aos primeiros.
O estudo de qualquer área das ciências - exactas, sociais ou humanas - altera convicções e representa um progresso na compreensão dessas áreas. O funcionamento da linguagem e das línguas é uma área estudada pelos linguistas: gramáticos, psicolinguistas, sociolinguistas. Eles estudam a compreensão que nos permite perceber uma língua e estudam a produção linguística dos falantes. Sabe-se hoje mais do que há 40 anos no que respeita à relação entre compreensão e produção linguística, entre aspectos cognitivos e aspectos verbais. Esse saber não é uma nebulosa nem uma "vaga ideia" a que nos podemos referir de qualquer maneira, mas exige termos de referência. Por essa razão, as gramáticas actuais utilizam termos que servem o que se já conhece do nosso uso da língua, embora muitos desses termos sejam os mesmos que já eram usados em gramáticas anteriores. Idênticas alterações conceptuais e terminológicas existem em todas as outras disciplinas. Será que a escola portuguesa não pretende acompanhar o progresso das ciências? Será que tudo o que é novo desperta uma reacção própria de um conservadorismo reaccionário? Será que o ensino não pode beneficiar dos avanços da ciência? Será que os professores que têm a seu cargo os primeiros ciclos escolares não estão à altura de conhecerem, e saberem como transmitir, o que se conhece hoje em qualquer ciência, inclusive a ciência da linguagem? E os professores que ensinam ciclos mais avançados? Será que não é bom que apresentem esse conhecimento usando os mesmos termos, ou é preferível que cada professor escolha a seu gosto os termos que utiliza?
Estou a referir-me ao ensino da língua que todos falamos, não estou, claro, a referir-me à análise do uso da língua como obra de arte, ou seja, o que se integra na teoria literária e no estudo da literatura em geral, que para isso não tenho preparação especial. Na realidade, qualquer programa de teoria da literatura mostra que os conceitos, e a consequente terminologia nesta área, são muito diversos dos que usa o mero estudo da língua. Veja-se: "os géneros poéticos"; "as categorias: poesia épica, didáctica, elegíaca, lírica, epinícia, trágica, cómica e bucólica (...) O possível/impossível como categorias fenomenológicas" (programa de teoria da literatura da FLUL). E são temas específicos da literatura a desconstrução, a fenomenologia, o formalismo, o marxismo, a narratologia ou o pós-modernismo (CECLU da UNL). Estes são termos que ocorrem em programas universitários. Mas nos outros níveis de ensino também se encontram termos nem sempre transparentes, como por exemplo, em Quadros de Referência do ensino secundário, as "réplicas e didascálias", o "cânone literário", "a ambiguidade, polissemia e conotação", os "mitos/arquétipos", a "epígrafe, o incipit, o explicit". Os linguistas não estão preocupados em discutir estes (e muitíssimos outros) termos mas, sim, a sintaxe, a fonologia, a morfologia, a semântica, etc., que são os que respeitam ao funcionamento da língua que todos utilizam.
Vejamos os aspectos concretos e de pormenor desta questão. Por tudo o que acima está dito, se considerou indispensável rever a Nomenclatura Gramatical Portuguesa publicada em Diário do Governo de Abril de 1967, que é a terminologia oficialmente utilizada no ensino. Esta terminologia fala de morfologia e sintaxe, mas da semântica só conhece a das palavras (não há semântica das frases?). Fala de substantivos :e adjectivos, mas acrescenta: "As palavras que participam da natureza substantiva ou adjectiva recebem a designação de nome, o que permite uma relacionação com "flexão nominal", "predicado nominal", etc." Os substantivos têm classificação, têm género, número, grau e ainda podem entrar em locuções. Os advérbios podem ter 15 classificações. A fonética sintáctica tem próclise, ênclise, crase intervocabular, elisão, ligação consonântica, haplologia intervocabular, entoação e ritmo, os complementos circunstanciais podem ser de nove tipos diferentes, entre eles o de instrumento (por exemplo, "cortei com a faca"). Já não se lembravam que era assim que se aprendia? Não sabiam que estes termos complicados faziam parte da terminologia que se quer actualizar? Até o epiceno faz parte da infância de muitos dos que gritam e prevêem as maiores desgraças para o país inteiro com a nova terminologia. Felizmente, muitas coisas mudaram desde então. Os escritores não gostam do modificador, do anafórico, do agentivo? Mas gostam com certeza da aférese, da síncope e apócope ou de prótese, da epêntese e da paragoge, ou de crase, da sinérese e da diérese que estão na Nomenclatura de 67. E não gostam do ataque ou da coda da sílaba? Lamento, mas não perceberão nada de qualquer livro que aborde a prosódia das línguas. Aliás, o que é necessário é que o professor saiba o que são estas duas partes da estrutura da sílaba (que também tem estrutura, imaginem!?) e que o faça perceber aos alunos, sem precisar de os obrigar a decorar o termo. E assim por diante.
Por favor, não falem do que não sabem e deixem-nos trabalhar sobre a actualização da Terminologia, tirar conclusões da experiência em curso e tornar o ensino da gramática do português menos obsoleto e integrado nos programas actuais que, evidentemente, não sofrerão qualquer alteração.
[Professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; co-autora da TLEBS
2.12.06
Francisco Seixas da Costa*
Sem os menores complexos ou remorsos, Portugal vive a sua história com uma imensa serenidade e um grande orgulho. O tempo ajudou-nos a arquivar os conflitos e a saber retribuir os afectos, muito para além das hipérboles da retórica. Brasil e Portugal, pelo que foram e pelo que são, podem hoje dar-se ao luxo de revisitar, num exercício de imaginário assente numa língua e em tantas outras coisas em comum, os dias da presença da Corte de um deles na bela cidade que, afinal, se tornaria a capital do outro. Estou certo que saberemos fazer essa festa com alegria e amizade sincera.
* Embaixador de Portugal no Brasil