Um Tal Fernando Assis Pacheco
Jornal Público, Sábado, 21 de Fevereiro de 2004
Fernando Pinto do Amaral
Título - Respiração Assistida
Autor - Fernando Assis Pacheco
Posfácio - Manuel Gusmão
Editora - Assírio & Alvim
88 págs., ¤ 12,00
Uma das mais persistentes confusões quando se fala de poesia tem nascido do equívoco com que por vezes alguns leitores identificam uma suposta "linguagem poética", superiorizando-a perante o que seria a linguagem comum - como se a poesia pudesse sempre definir-se através de uma sobrecarga retórica e metafórica em relação à restante linguagem, cavando assim uma distância que inapelavelmente as separasse.
Vem isto a propósito de Fernando Assis Pacheco (1937-1995), autor revelado em 1963 com "Cuidar dos Vivos", livro que nesse momento histórico se enquadrava numa poesia de intervenção política, comprometida num testemunho de luta contra a guerra colonial. Publicando ao longo do tempo colectâneas de circulação muito restrita - quase clandestinamente divulgadas entre amigos, em edições de autor -, o poeta veio a reunir a sua obra apenas em 1991 ("A Musa Irregular", Ed. Hiena), num volume que manifestava o desejo de fugir a qualquer dicção grandiloquente - "Peçam a grandiloquência a outros" (p.166) -, oferecendo-nos, em vez disso, uma linguagem coloquial muitas vezes irónica, mordaz, satírica, mas ao mesmo tempo comovida com o pequeno espectáculo do mundo e descrente das virtualidades da própria poesia: "e depois isto dos versos / passados anos já não passam de enganos" (id., p.194).
É dentro deste registo desvalorizador do papel tradicionalmente atribuído ao género literário "poesia" que podemos ler agora um notável conjunto de 35 poemas inéditos ou dispersos à data da morte do autor - textos escritos num tom muito pessoal, que propositadamente disfarça a pulsão lírica graças a formas muito eficazes de camuflagem irónica, sabotando e subvertendo os "clichés" associados ao lirismo. Como sintetiza Manuel Gusmão num lúcido posfácio, trata-se de "uma poética da deflação do 'pathos' lírico. A expressão julgo que permite, por um lado, não apagar a sua inequívoca dimensão lírica e, por outro lado, dar conta dos processos de 'decapagem' a que ela é submetida, assim como das modulações irónica, satírica ou de 'escárnio e mal-dizer' igualmente manifestas" (p.66).
Para alguns leitores mais apressados, talvez o que sobressaia seja precisamente esta componente escarninha, satírica ou abertamente "fescenina" (a palavra é de Manuel Gusmão), patente quer nos "Desversos" que jogam por vezes num terreno político, quer em alguns textos mais desbragados, que retomam a alegre celebração do prazer sexual - veja-se um soneto dedicado aos testículos: "Pus-vos a mão um dia sem saber / que tão robusta e certa artilharia / iria pelos anos fora ser / sinal também de lêveda alegria // amigos meus colhões quanto prazer / veio até mim em vossa companhia / a hora em que tiver já de morrer / morra feliz por tanta cortesia" (p.19).
Uma das maiores qualidades da escrita de Fernando Assis Pacheco provém, no entanto, do modo muito subtil de articular uma apurada crítica social e, ao mesmo tempo, uma análise distanciada do "eu" ou daquilo em que o "eu" se tornou - pouco a pouco transformado num "tu" a quem o poema se dirige sem contemplações: "Alombo contigo há uma porção de anos / e vou-te dizer és um chato / não tens ponta de paciência / para a vida nem para ti próprio // [...] // vez por outra um livrinho / de versos vez por outra nada / qualquer um do teu tempo / está bastante melhor do que tu / deputado administrador de empresa / ministro da maioria / puta (alguns chegaram a isso)" (p.43).
Estes efeitos de auto-ironia tornam-se particularmente evidentes quando o poeta se afasta ainda mais de si mesmo e se observa na terceira pessoa, falando sobre "um tal Fernando Assis Pacheco" como se se tratasse de um duplo ou de uma personagem vagamente familiar: "Vivo com ele há anos suficientes / para poder dizer que o reconheceria / num dia de Novembro no meio da bruma / é como uma pessoa de família // [...] / não invento nada vi-o crescer comigo // chorava então desabaladamente / e eu com ele sentindo-nos perdidos / o cobertor puxado sobre a cabeça / seria trágico se não fosse ridículo // [...] / não lhe perguntem se foi feliz" (p.45).
O amargo pedido deste último verso denota já uma inflexão de perspectiva, no sentido de um balanço existencial de tons elegíacos, recuperando um pouco de tudo o que foi importante numa vida humana, na vida desse "tal Fernando Assis Pacheco". É graças a esse movimento de regresso que vemos desfilar os pais, as filhas, a família ou os amigos - por vezes explicitamente nomeados -, compondo um mosaico de imagens e episódios de um passado acontecido algures entre Coimbra e Lisboa, entre a Galiza e a ria de Aveiro: um passado legível como memória já longínqua ("ao tempo que isto foi", p.41), mas apto a iluminar o presente com a sua luz talvez um pouco baça. A esse respeito, chamo a atenção para uma belíssima "Elegia" dedicada aos desaparecidos tempos de Coimbra: "com 40 mil habitantes no melhor dos casos / a cidade tinha um ar modesto e a puxar para o triste / sempre os mesmos cães magros sempre a mesma gente lenta / o mesmo nevoeiro subindo em espiral do rio // nesse tempo ainda os meus pais eram da família / que depois perdi em anos consecutivos / e eu julgava-os imortais como deuses de luz clara / brilhando à mesa sobre a grande toalha de linho // nem tão-pouco pretendo aborrecer agora os meus filhos / com histórias dessa que enterrada está Coimbra / nós vamos no oco da onda ébrios de sal mordente / o que vem dar à praia é espuma fria e olvido" (p.24).
Para lá deste lirismo nostálgico, aliás já cultivado em muita da anterior obra de Assis Pacheco, o que se torna novo nesta fase - sobretudo agora, com os poemas reunidos num livro - consiste numa penetrante e obsessiva presença da morte, embora uma morte cujo peso trágico acabe por surgir quase sempre subvertido por uma retórica deceptiva e por um fino sentido de humor. Mas com humor ou sem ele, a morte existe e infiltra-se nesta poesia, que mostra conhecê-la ou antecipá-la, declinando-a quer como futura ausência do sujeito - veja-se o poema em que faz o inventário da sua herança (pp. 27 / 28) -, quer através dos seus sinais concretos e terrivelmente sensíveis ao nível do corpo, no momento em que uma ou mais doenças ameaçam e avançam sobre alguém numa cama de hospital, "entre os frascos do soro" (p.51) e a solidão última de um homem que, tal como Ruy Belo, sabia estar a despedir-se da terra da alegria:
"Triste de mim mais triste que a tristeza / triste como a mão que segura o copo / como a luz do farol esgaçando a névoa / triste como o cão manco / deixado na serra pelos caçadores // [...] // a tarde triste os anos tristes / a grande costura da tristeza / do esterno ao baixo ventre // triste e já sem nenhum reparo / a fazer à metafísica / senão que é um défice / porventura / do córtex cerebral" (pp. 21 / 22).