30.5.07

PRÉ-PUBLICAÇÃO: As Mulheres do Meu Pai, de José Eduardo Agualusa.
(Capítulo 1) [parte ii]


(Carta de Doroteia para Laurentina.)

Querida filha,

Hei-de chamar-te filha até ao fim.

Há algo que tens de saber, e quero que o saibas através de mim, porque se o não soubeste antes foi por minha culpa, porque me faltou a coragem.

Não vieste do meu ventre. No mesmo dia em que nasceste, eu perdi uma menina. No quarto onde estava, numa clínica modesta, na Ilha de Moçambique, outra mulher deu à luz. O parto correu mal e ela não sobreviveu. Os pais dessa mulher perguntaram-me se queria ficar com a criança – e eu disse que sim. A partir do instante em que olhei para ti amei-te como a uma filha autêntica.

Era isto que te queria dizer. Perdoa-me não o ter dito antes.

Ajuda o teu pai. É ele quem me preocupa. Dário não sabe viver sozinho. Tivemos as nossas zangas. Penso que fui, muitas vezes, demasiado áspera para com ele. Mas amo-o muito, compreendes?, foi o único homem da minha vida. Sempre me custou a aceitar que tivesse amado outras mulheres antes de mim. Pior – enquanto estava comigo. Mas são assim os homens.

Foste o melhor que a vida me deu.
A tua mãe,

Doroteia.

///


(Pecado é não amar.)

Infeliz coincidência. Não sei como lhe chamar. Faustino Manso, o meu pai, morreu ontem à tarde. Comprei no aeroporto, ao desembarcar, o Jornal de Angola. A notícia, breve, seca, vem na página de cultura:

"Morreu o Seripipi Viajante – Faustino Manso, 81 anos, faleceu na madrugada de ontem, na clínica Sagrada Esperança, Ilha de Luanda, após prolongada doença. Manso, a quem os seus admiradores chamavam o Seripipi Viajante, foi um músico muito popular durante os anos 60 e 70, não apenas em Angola, mas em toda a África Austral. Viveu em diversas cidades angolanas, e também em Cape Town, África do Sul, e em Maputo, então Lourenço Marques. Regressou a Luanda, de onde era natural, em 1975, logo após a independência. Foi durante muitos anos funcionário do Instituto Nacional do Livro e do Disco. Deixou viúva, a senhora Anacleta Correia da Silva Manso, além de três filhos e 12 netos."

As páginas da necrologia são mais eloquentes. Quatro anúncios trazem o nome de Faustino Manso. O primeiro é assinado por Anacleta Correia da Silva Manso. É o maior. A fotografia é também um pouco maior e mais recente. Reza assim:

"Partiste sem um último adeus, marido, apagou-se o sol na minha vida. Calou-se a voz magnífica: quem agora cantará para mim enquanto eu bordo? Enganaste-me, prometeste-me que ficarias comigo até que chegasse o fim, e que me darias a mão para que eu não sentisse medo. Medo é o que sinto agora. No fim voltaste a deixar-me, e é tão longa a viagem. Não sei se conseguirei perdoar-te."

O segundo é assinado pelos três filhos, N'Gola, Francisca (Cuca) e João (Johnny). A fotografia mostra Faustino Manso abraçado a uma guitarra.

"Querido pai, conhecemo-nos tarde, mas não, felizmente, demasiado tarde. Partiste, mas deixaste-nos as tuas canções. Hoje cantamos contigo: Nenhum caminho tem fim / longe do teu abraço."

O terceiro e o quarto anúncios apanharam-me de surpresa. Sentei-me, aturdida, sobre a minha mala. Pedi a Mandume que me fosse comprar uma garrafa de água. Acho que só então me dei conta do calor. Ascendia do chão, húmido e denso, colava-se à pele, enrolava-se no cabelo, e era ácido como o hálito dos velhos. Uma tal Fatita de Matos, em Benguela, assina o único anúncio sem fotografia. O texto é curto, mas explícito:

"Pecado é não amar. Pecado maior é não amar até ao fim do amor. Não me arrependo de nada, Tino, meu seripipi. Repousa em paz."

No último anúncio, o meu pai posa para a posteridade, no vigor dos seus trinta anos, sentado à mesa de um bar. Diante dele tem uma garrafa de cerveja. Distingue-se o rótulo: Cuca. Enquanto escrevo estas notas também eu bebo uma Cuca. É boa, muito leve e fresca. Releio o texto:

"Pai querido, abraça a mãe quando a encontrares. Leopoldina esperou tanto tempo por esse abraço. Diz-lhe que os filhos dela, os vossos filhos, sofrem de saudades, mas que pensam em vós todos os dias, e que o vosso exemplo de coragem e de honestidade nos orienta, e orientará sempre. A nossa terra ficou mais triste sem a alegria do teu contrabaixo. Quem o tocará agora? Os teus filhos: Babaera e Smirnoff."

///

Os pais de Mandume casaram em Lisboa, em 1975, tinham ambos vinte anos. Marcolino estudava arquitectura. Manuela, enfermagem. Deviam ser bastante ingénuos, ainda hoje são. Manuela disse-me:

– Naquela época éramos todos nacionalistas, parecia uma doença. Odiávamos Portugal. Queríamos terminar os cursos e regressar à trincheira firme do socialismo em África.

Manuela deu-me a ouvir velhos discos, em vinil, de música angolana. Há várias canções que falam na trincheira firme do socialismo em África. Assim mesmo, sem a menor sombra de ironia. A burocracia portuguesa não aceitou que o primeiro filho do casal se chamasse Mutu, em homenagem a um rei do planalto central de Angola: Mutu-ya-Kevela. Ficou Marcelo para efeitos oficiais, e Mutu, para a família e amigos mais próximos. Mandume, o filho do meio, chama-se na realidade Mariano, e Mandela, o mais novo, Martinho. Em 1977, ano em que nasceu Mandume, os dois irmãos de Marcolino foram fuzilados em Luanda, acusados de envolvimento numa tentativa de golpe de Estado. Marcolino ficou muito transtornado. Nunca mais falou em regressar. Concluído o curso conseguiu emprego no atelier de um arquitecto, também ele natural de Angola, requereu a nacionalidade portuguesa e dedicou-se inteiramente ao trabalho. Conheci Mandume há sete meses. O que primeiro me atraiu nele foram os olhos. O brilho dos olhos. O cabelo, dividido em pequenas tranças espetadas, dá-lhe um ar de rebeldia, que contrasta com a doçura dos gestos e da voz. Gosto de vê-lo caminhar. No mundo em que ele se move não existe atrito.

– Como um gato?

Aline, num sopro, os lábios húmidos, debruçada sobre a mesa. “Se dizemos que alguém caminha suavemente, as pessoas lembram-se logo dos gatos.” Não, querida Aline, Mandume não parece um gato. Há, nos gatos, na forma como se movem, uma espécie de arrogância, um imperial desdém pela pobre humanidade, e isso não tem nada a ver com Mandume. Ele é ao mesmo tempo humilde e desafiador. Pelo menos é assim que eu o vejo. Talvez seja dos meus olhos. Pode ser amor. Aline riu-se, lembro-me dela a rir-se quando pela primeira vez lhe falei de Mandume. Tem um riso bonito. É a minha melhor amiga.

– E Mandume, o que significa?

Mandume? Ah, outro rei. Um soba cuanhama que se suicidou durante uma batalha, no Sul de Angola, contra tropas alemãs. Mandume, o meu Mandume, não está muito preocupado em saber quem foi o personagem histórico a quem deve o nome. Quando lhe perguntei como se chamava, disse-me:

– Mariano. Mariano Maciel.

E foi Mário, o técnico de som, um homem baixo, pálido, com o cabelo ralo mas comprido, muito loiro, quem contrapôs sorrindo:

– Aliás, Mandume, o preto mais branco de Portugal.

Frase infeliz. Reagi com violência:

– Sim?! E isso é suposto ser um elogio?...

Era suposto ser um elogio. Hoje sou tentada a concordar com o pobre Mário e até já utilizei a mesma frase contra Mandume. Há momentos em que me sinto realmente apaixonada por ele. Noutros, porém, quase o odeio. Irrita-me o desprezo que demonstra em relação a África. Mandume decidiu ser português. Está no seu direito. Não creio, porém, que para se ser um bom português tenha de renegar todos os seus ancestrais. Eu sou certamente uma boa portuguesa, mas também me sinto um pouco indiana; finalmente, vim a Angola procurar o que em mim possa haver de africano.

Mandume acompanhou-me, renitente.

– Enlouqueceste? O que vais tu fazer a África?...

Veio, afinal, para me salvar de África. Veio para nos salvar. É um querido, eu sei, tenho de ter mais paciência com ele. Além disso gosta do que faz. Passa o dia a perseguir-me com a câmara de vídeo. Digo-lhe que filme isto ou aquilo, o que ele finge fazer, mas quando presto atenção está a filmar-me a mim.
PRÉ-PUBLICAÇÃO: As Mulheres do Meu Pai, de José Eduardo Agualusa [Edição Dom Quixote].
(Capítulo 1)

Oncócua, Sul de Angola. [Leandro, a partir daqui começamos em página branca]
Domingo, 6 de novembro de 2005.


Acordei suspenso numa luz oblíqua. Sonhava com Laurentina. Ela conversava com o pai, o qual, vá-se lá saber porquê, tinha a cara do Nelson Mandela. Era o Nelson Mandela, e era o pai dela, e no meu sonho tudo isso parecia absolutamente natural. Estavam sentados ao redor duma mesa de madeira escura, numa cozinha idêntica em tudo à do meu apartamento na Lapa, em Lisboa. Sonhei também com uma frase. Acontece-me frequentemente. Eis a frase:
– De quantas verdades se faz uma mentira?
A luz, filtrada primeiro por uma rede muito fina, presa à janela, e uma outra vez pelo mosquiteiro, a envolver a cama, deslizava puríssima, numa torrente incrédula, contaminando a realidade com a sua própria descrença. Virei a cabeça e dei com o rosto de Karen. Dormia. A dormir Karen volta a ser jovem, como suponho que era antes da doença (da maldição).
Estamos em Oncócua, num pequeno posto médico gerido por uma organização não-governamental alemã. Oncócua, como tantas outras vilas de Angola, foi desenhada com largas avenidas, para ser no futuro uma grande cidade. O futuro, todavia, atrasou-se. Talvez nunca chegue. Levantei-me com cuidado e espreitei pela janela. Uma enorme montanha, com o formato de um cone perfeito, flutuava no horizonte. Duas mulheres mucubais avançavam sem ruído. A mulher mais alta não devia ter mais de 16 anos, cintura estreita, pulseiras coloridas nos finos pulsos dourados; lembrei-me, ao vê-la, de um verso de Ruy Duarte de Carvalho – os seios: frágeis acúleos na placa do peito. Ruy Duarte escreveu belos versos sobre os seios das meninas mucubais. Compreendo-o bem. Se eu fosse poeta não teria outro tema. A segunda mulher cobria o tronco com um pano verde e amarelo. Mancava um pouco.
– São bonitas, não são?...
Karen estava sentada na cama, o cabelo castanho em desalinho. Disse-lhe:
– Sonhei com a Laurentina...
– A sério? Isso é bom. As personagens começam a existir no momento em que nos aparecem em sonhos.
– No meu sonho ela era indiana. Uma rapariga de cabelo liso, olhos grandes, pele muito escura.
– Não pode ser. Talvez meio indiana, não te esqueças que o pai é português...
– O pai? Qual deles?...
– Boa pergunta. O Faustino Manso era luandense, mulato ou negro. O que a adoptou era português, e o biológico...
– Não pensámos nisso...
– Tens razão, não pensámos nisso. Quem diabo era o verdadeiro pai de Laurentina?...

(Mentiras primordiais.)

Fecho os olhos e no mesmo instante regresso à tarde em que a minha mãe morreu. O meu pai recebeu-me à porta do quarto:
– Ela está muito agitada – murmurou. Tenta acalmá-la.
Entrei. Vi-lhe os olhos acessos na penumbra:
– Filha.
Colocou-me na mão um envelope:
– Chamam-me. Tenho de ir. Isto é para ti, Laurentina. Perdoa-me...
Não voltou a falar. Mais tarde apareceu Mandume. Lembro-me de o ver ajoelhado aos pés da cama, segurando a mão da minha mãe. O meu pai, em pé, de costas para nós. O meu pai, ou melhor, o homem que até àquela tarde eu acreditava que fosse o meu pai. Está agora sentado diante de mim. Tem um rosto seco, anguloso, com as maçãs do rosto salientes. A cabeleira é farta, grisalha, penteada para trás. Deve ter ensaiado a pergunta noites a fio na solidão do seu quarto de viúvo:
– De quantas verdades se faz uma mentira?
Fica calado um momento, o olhar perdido em algum ponto atrás de mim, depois acrescenta com ênfase:
– Muitas, Laurentina, muitas! Uma mentira, para que funcione, há-de ser composta por muitas verdades.
Olhos brilhantes, húmidos. Sorri tristemente:
– Era uma boa mentira, a nossa, uma mentira composta por muitas verdades, e todas elas felizes. Por exemplo, o amor que Doroteia tinha por ti era realmente um amor de mãe. Tu sabes disso, não sabes?
Olho-o atordoada. Levanto-me e vou até à janela. Posso ver dali o pátio iluminado pelo sol. A figueira que salvei, há anos, tirando-a de uma pequena jarra quebrada, numa lixeira, e plantando-a num enorme vaso de barro, está a dar-se bem junto à enorme chaminé em tijolo que divide o pátio. Cresceu muito, e muito torta, como é próprio da natureza das figueiras. A buganvília, ao fundo, já perdeu todas as flores. Janeiro declina. Um mês mau para se morrer, mesmo em Lisboa, onde até no inverno surgem com frequência, desgarrados e sonolentos, como papoilas dispersas num campo de trigo, dois ou três esplêndidos dias de verão.
O meu pai teria gostado que eu fosse um rapaz. Até aos 12 anos, ignorando os protestos da minha mãe, comprava-me calções, e boinas, e jogava à bola comigo. Temos uma ligação muito forte. Tivemos sempre.
– A ilha, papá, como é o tempo em Moçambique, nesta época?
A pergunta não o surpreende. Julgo que se sente aliviado por poder mudar de assunto. Suspira. “Em Janeiro”, diz, “costuma fazer muito calor na ilha. O mar é de um verde luminoso, a água quente, filha, chega aos 35 graus, uma sopa de esmeraldas”. Tira uma moeda do bolso, “Lembras-te?”, eu lembro-me, claro. Seguro na moeda. Vinte reis. Está muito gasta, mas ainda assim consigo ler a data sem dificuldade: “1824”. O meu pai encontrou a moeda numa praia da ilha, no primeiro dia em que lá chegou, o mesmo em que conheceu a minha mãe. Doroteia fazia 15 anos; Dário, 49. Foi, portanto, a 18 de dezembro de 1973. Nasci dois anos depois. Penso nisto, no meu nascimento, e uma revolta súbita toma conta de mim. Tenho consciência de que a minha voz se torna mais aguda e de que estou a ponto de chorar. Não quero chorar[1]:
– Estou aqui a tentar compreender como é que vocês foram capazes de me esconder uma coisa dessas durante tantos anos! Podes explicar-me?...



[1] Choro muito. Choro no cinema, nos casamentos, choro a ler qualquer coisa, eu sei lá, O amor nos tempos da cólera. Comovem-me os desastres ou as alegrias de amor dos outros, mas não me lembro de ter chorado alguma vez em razão dos meus próprios desaires.


[FJV]

4.5.07

Lourenço Marques ou a busca nostálgica
de uma cidade perdida


Lourenço Marques, de Francisco José Viegas, é uma viagem, embalada pelo vento de memória, à antiga cidade colonial

Adelto Gonçalves || O Primeiro de Janeiro, em 03/03/2003”


Escrito como se fosse um romance policial, Lourenço Marques, de Francisco José Viegas, é uma viagem, embalada pelo vento de memória, à antiga cidade colonial, a uma época pouco anterior à Revolução dos Cravos e ao processo de independência de Moçambique. Miguel, alter ego do autor, volta à "cidade das acácias", antiga pérola do Índico, 27 anos depois de a ter abandonado, para procurar uma mulher, Maria de Lourdes, aliás Sara, que agora é mais uma miragem.
De volta à cidade onde amou pela primeira vez, Miguel reencontra um país virado do avesso, embora não carregue dentro de si nenhuma saudade dos tempos do colonialismo. Para reencontrar essa mulher – mais uma entidade mítica do que um ser de carne e osso –, recorta o mapa de Moçambique, indo de Maputo a Pemba e a Nampula, da Ilha de Moçambique ao Lago Niassa, fazendo dessa busca um discurso nostálgico de uma África que não existe mais porque reconstruída pela memória. Miguel lamenta assim a perda de um mundo que não viveu: o amor da mulher que desapareceu, a oportunidade perdida de viver um grande amor, o arrependimento por não ter ficado e vivido as transformações (para pior ou para melhor).
Narrado em estilo límpido, fluente, em que fica claro o domínio pelo autor dos segredos da fabulação literária, Lourenço Marques exerce fascínio desde o início, quando, como numa narrativa policial, o leitor descobre logo nas primeiras linhas que um corpo apareceu inerte, numa manhã de março de 2001, num arrabalde de Maputo. É o corpo de Gustavo Madane, ex-homem forte do regime marxista, agora caído em desgraça, depois de ter sido um dos organizadores dos campos de "reeducação" e de abusar de suas funções.
Em seguida, começa o itinerário da busca da mulher amada por Miguel, que, nesse trajeto, acaba por cruzar com Domingos Assor, companheiro de infância, agora transformado em policial que investiga o assassinato de Gustavo Madane. Em seu retorno à infância perdida, Miguel refaz a tessitura do tempo que vivera no início da década de 70. "Tinhas, portanto, quinze anos. Não. Dezasseis. Dezasseis e os grandes jogadores de basquete do Sporting de Lourenço Marques, Mário Albuquerque, Nelson Serra, Rui Pinheiro, os restaurantes da Facim, uma temporada de Lucília do Carmo e de Carlos do Carmo, o automobilismo sul-africano de fórmula um em Moçambique, com John Love, fumo a sair do motor, a velocidade a que o carro saiu da pista, e lembrava-se de Jody Scheckter na pista de Lourenço Marques e, sobretudo, daquele Renault Gordini branco, o Renault Gordini de Antunes Guimarães, branco com uma faixa dourada à volta (...)".
Na Ilha de Moçambique, Miguel encontra Abdurrazaque, xehe da mesquita do local, que havia trabalhado com seu pai numa empreitada para levar dois barcos gigantes para o Niassa. Abdurrazaque, que lhe recita de trás para a frente os versículos do Alcorão, faz-lhe reparar também que o mar da Ilha é diferente do mar do continente, "azul, amarelo, ocre, verde cinzento, um arco-íris, o mesmo arco-íris que Deus mostrou a Noé depois do dilúvio". No Niassa, Miguel é tratado pelo último médico branco de Lichinga, que ali aguarda a chegada da morte depois de ter sido abandonado pela mulher e de saber que está sendo corroído pelo câncer.
Durante esse périplo pelo país, de Norte a Sul, Miguel carrega consigo a lembrança de Lourenço Marques como a metáfora de uma vida que poderia ter sido – e não foi –, interrompida pela guerra e pela decisão do pai-engenheiro de retornar a Portugal. É uma Lourenço Marques que só existe na memória de quem a viveu e que Francisco José Viegas reconstrói com uma mestria que faz lembrar a Havana dos anos 40 e 50 recuperada por Guillermo Cabrera Infante em La Habana para un infante difunto.
Nessa busca nostálgica de uma cidade perdida, sente-se a voz de Rogéria, "a cantora brasileira do Denis Dwarte Show acompanhada pela Orquestra Moderna Os Embaixadores", vive-se o entrai-e-sai nas boates, "Tamila Dancing, ao lado do Pinguim e da Cave: Pepita Cortés, as argentinas Star Dancer´s, Rony Vali, a judia rodesiana Rochele, Consuelo Martinez e os Latin Soul Quartet, que apareceriam no programa "Chuva de Estrelas", de Maria Helena Bramão, na Rádio Clube de Moçambique. E os passeios, as entradas nos cafés, nas cervejarias, no Píri-Píri, o restaurante Vitória, a cervejaria Imperial, a pastelaria Cristal, o Baía, a Adega da Madragoa, o restaurante Comandante, no Hotel Cardoso, onde tocava o Quinteto de Pereira Pinto e Carlos Parker (...)"
Depois de percorrer todo Moçambique, Miguel ouve de um preto que a sua Lourenço Marques acabou há muito tempo. E que agora o que resta é uma cidade suja, "com merda onde deviam estar flores", depois da guerra fratricida e do fracasso da experiência socialista. Apesar disso, esta reconstituição que Francisco José Viegas faz de Lourenço Marques nada tem de ressentimento colonialista. Essa Lourenço Marques que recupera está reconstruída não só com memória mas também com muita fantasia, assim como a Dublin de James Joyce, a Trieste de Italo Svevo, a Buenos Aires de Julio Cortázar e de Jorge Luis Borges ou a Havana de Cabrera Infante. É um discurso poético em prosa, centrado na temática da paixão amorosa tradicional, a busca de uma mulher que já não existe porque, 27 anos depois, ninguém é mais a mesma pessoa. Uma história da memória portuguesa feita por um mestre da escrita.
_____________________
LOURENÇO MARQUES, de Francisco José Viegas. Porto, Edições ASA, 2002, 208 págs.