PRÉ-PUBLICAÇÃO: As Mulheres do Meu Pai, de José Eduardo Agualusa.
(Capítulo 1) [parte ii]
Querida filha,
Hei-de chamar-te filha até ao fim.
Há algo que tens de saber, e quero que o saibas através de mim, porque se o não soubeste antes foi por minha culpa, porque me faltou a coragem.
Não vieste do meu ventre. No mesmo dia em que nasceste, eu perdi uma menina. No quarto onde estava, numa clínica modesta, na Ilha de Moçambique, outra mulher deu à luz. O parto correu mal e ela não sobreviveu. Os pais dessa mulher perguntaram-me se queria ficar com a criança – e eu disse que sim. A partir do instante em que olhei para ti amei-te como a uma filha autêntica.
Era isto que te queria dizer. Perdoa-me não o ter dito antes.
Ajuda o teu pai. É ele quem me preocupa. Dário não sabe viver sozinho. Tivemos as nossas zangas. Penso que fui, muitas vezes, demasiado áspera para com ele. Mas amo-o muito, compreendes?, foi o único homem da minha vida. Sempre me custou a aceitar que tivesse amado outras mulheres antes de mim. Pior – enquanto estava comigo. Mas são assim os homens.
Foste o melhor que a vida me deu.
A tua mãe,
Doroteia.
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(Pecado é não amar.)
Infeliz coincidência. Não sei como lhe chamar. Faustino Manso, o meu pai, morreu ontem à tarde. Comprei no aeroporto, ao desembarcar, o Jornal de Angola. A notícia, breve, seca, vem na página de cultura:
"Morreu o Seripipi Viajante – Faustino Manso, 81 anos, faleceu na madrugada de ontem, na clínica Sagrada Esperança, Ilha de Luanda, após prolongada doença. Manso, a quem os seus admiradores chamavam o Seripipi Viajante, foi um músico muito popular durante os anos 60 e 70, não apenas em Angola, mas em toda a África Austral. Viveu em diversas cidades angolanas, e também em Cape Town, África do Sul, e em Maputo, então Lourenço Marques. Regressou a Luanda, de onde era natural, em 1975, logo após a independência. Foi durante muitos anos funcionário do Instituto Nacional do Livro e do Disco. Deixou viúva, a senhora Anacleta Correia da Silva Manso, além de três filhos e 12 netos."
As páginas da necrologia são mais eloquentes. Quatro anúncios trazem o nome de Faustino Manso. O primeiro é assinado por Anacleta Correia da Silva Manso. É o maior. A fotografia é também um pouco maior e mais recente. Reza assim:
"Partiste sem um último adeus, marido, apagou-se o sol na minha vida. Calou-se a voz magnífica: quem agora cantará para mim enquanto eu bordo? Enganaste-me, prometeste-me que ficarias comigo até que chegasse o fim, e que me darias a mão para que eu não sentisse medo. Medo é o que sinto agora. No fim voltaste a deixar-me, e é tão longa a viagem. Não sei se conseguirei perdoar-te."
O segundo é assinado pelos três filhos, N'Gola, Francisca (Cuca) e João (Johnny). A fotografia mostra Faustino Manso abraçado a uma guitarra.
"Querido pai, conhecemo-nos tarde, mas não, felizmente, demasiado tarde. Partiste, mas deixaste-nos as tuas canções. Hoje cantamos contigo: Nenhum caminho tem fim / longe do teu abraço."
O terceiro e o quarto anúncios apanharam-me de surpresa. Sentei-me, aturdida, sobre a minha mala. Pedi a Mandume que me fosse comprar uma garrafa de água. Acho que só então me dei conta do calor. Ascendia do chão, húmido e denso, colava-se à pele, enrolava-se no cabelo, e era ácido como o hálito dos velhos. Uma tal Fatita de Matos, em Benguela, assina o único anúncio sem fotografia. O texto é curto, mas explícito:
"Pecado é não amar. Pecado maior é não amar até ao fim do amor. Não me arrependo de nada, Tino, meu seripipi. Repousa em paz."
No último anúncio, o meu pai posa para a posteridade, no vigor dos seus trinta anos, sentado à mesa de um bar. Diante dele tem uma garrafa de cerveja. Distingue-se o rótulo: Cuca. Enquanto escrevo estas notas também eu bebo uma Cuca. É boa, muito leve e fresca. Releio o texto:
"Pai querido, abraça a mãe quando a encontrares. Leopoldina esperou tanto tempo por esse abraço. Diz-lhe que os filhos dela, os vossos filhos, sofrem de saudades, mas que pensam em vós todos os dias, e que o vosso exemplo de coragem e de honestidade nos orienta, e orientará sempre. A nossa terra ficou mais triste sem a alegria do teu contrabaixo. Quem o tocará agora? Os teus filhos: Babaera e Smirnoff."
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Os pais de Mandume casaram em Lisboa, em 1975, tinham ambos vinte anos. Marcolino estudava arquitectura. Manuela, enfermagem. Deviam ser bastante ingénuos, ainda hoje são. Manuela disse-me:
– Naquela época éramos todos nacionalistas, parecia uma doença. Odiávamos Portugal. Queríamos terminar os cursos e regressar à trincheira firme do socialismo em África.
Manuela deu-me a ouvir velhos discos, em vinil, de música angolana. Há várias canções que falam na trincheira firme do socialismo em África. Assim mesmo, sem a menor sombra de ironia. A burocracia portuguesa não aceitou que o primeiro filho do casal se chamasse Mutu, em homenagem a um rei do planalto central de Angola: Mutu-ya-Kevela. Ficou Marcelo para efeitos oficiais, e Mutu, para a família e amigos mais próximos. Mandume, o filho do meio, chama-se na realidade Mariano, e Mandela, o mais novo, Martinho. Em 1977, ano em que nasceu Mandume, os dois irmãos de Marcolino foram fuzilados em Luanda, acusados de envolvimento numa tentativa de golpe de Estado. Marcolino ficou muito transtornado. Nunca mais falou em regressar. Concluído o curso conseguiu emprego no atelier de um arquitecto, também ele natural de Angola, requereu a nacionalidade portuguesa e dedicou-se inteiramente ao trabalho. Conheci Mandume há sete meses. O que primeiro me atraiu nele foram os olhos. O brilho dos olhos. O cabelo, dividido em pequenas tranças espetadas, dá-lhe um ar de rebeldia, que contrasta com a doçura dos gestos e da voz. Gosto de vê-lo caminhar. No mundo em que ele se move não existe atrito.
– Como um gato?
Aline, num sopro, os lábios húmidos, debruçada sobre a mesa. “Se dizemos que alguém caminha suavemente, as pessoas lembram-se logo dos gatos.” Não, querida Aline, Mandume não parece um gato. Há, nos gatos, na forma como se movem, uma espécie de arrogância, um imperial desdém pela pobre humanidade, e isso não tem nada a ver com Mandume. Ele é ao mesmo tempo humilde e desafiador. Pelo menos é assim que eu o vejo. Talvez seja dos meus olhos. Pode ser amor. Aline riu-se, lembro-me dela a rir-se quando pela primeira vez lhe falei de Mandume. Tem um riso bonito. É a minha melhor amiga.
– E Mandume, o que significa?
Mandume? Ah, outro rei. Um soba cuanhama que se suicidou durante uma batalha, no Sul de Angola, contra tropas alemãs. Mandume, o meu Mandume, não está muito preocupado em saber quem foi o personagem histórico a quem deve o nome. Quando lhe perguntei como se chamava, disse-me:
– Mariano. Mariano Maciel.
E foi Mário, o técnico de som, um homem baixo, pálido, com o cabelo ralo mas comprido, muito loiro, quem contrapôs sorrindo:
– Aliás, Mandume, o preto mais branco de Portugal.
Frase infeliz. Reagi com violência:
– Sim?! E isso é suposto ser um elogio?...
Era suposto ser um elogio. Hoje sou tentada a concordar com o pobre Mário e até já utilizei a mesma frase contra Mandume. Há momentos em que me sinto realmente apaixonada por ele. Noutros, porém, quase o odeio. Irrita-me o desprezo que demonstra em relação a África. Mandume decidiu ser português. Está no seu direito. Não creio, porém, que para se ser um bom português tenha de renegar todos os seus ancestrais. Eu sou certamente uma boa portuguesa, mas também me sinto um pouco indiana; finalmente, vim a Angola procurar o que em mim possa haver de africano.
Mandume acompanhou-me, renitente.
– Enlouqueceste? O que vais tu fazer a África?...
Veio, afinal, para me salvar de África. Veio para nos salvar. É um querido, eu sei, tenho de ter mais paciência com ele. Além disso gosta do que faz. Passa o dia a perseguir-me com a câmara de vídeo. Digo-lhe que filme isto ou aquilo, o que ele finge fazer, mas quando presto atenção está a filmar-me a mim.