«Longe de Manaus»
Entre a poesia e a ficção.
E com humor, com muito humor
O policial Jaime Ramos volta a investigar...
Há um crime, um corpo que nada diz. Mas uma série de vestígios, de pequenos nadas que o persistente inspector Jaime Ramos, conhecida personagem de Francisco José Viegas, monta passo a passo. Recolhendo pistas, detalhes, traça, na verdade, a biografia de uma vida interrompida. E é a partir desse abrupto do crime que vasculha casas e vidas, e descobre tragédias, amores, e os tantos lugares em que o português se perdeu pelo mundo.
Natural de Vila Nova de Foz de Côa, onde nasceu no ano de 1962, Francisco José Viegas, actual director da Casa Fernando Pessoa, obteve com este livro o Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB 2006. Do Porto a Luanda, da Guiné ao Manaus, o seu personagem, Jaime Ramos, investiga um caso que nos leva em viagem. Conhecendo as cidades que conta, o autor deixa que a língua (que os diferentes ocupantes da língua) lhe dêem uma riqueza e perspectiva próprias. Mais uma vez o policial é em Francisco José Viegas uma magistral forma de poesia e ficção que condimenta a inconfundível humor. Flui, tudo flui na leitura de «Longe de Manaus»... (Ao prazer da leitura acrescente-se a inteligência do retrato.)
Círculo de Leitores online - Polícia, biógrafo e escritor – como liga estas profissões? Tem o seu investigador Jaime Ramos algo de biógrafo, e tem o Francisco José Viegas algo de investigador de vidas?
Franscisco José Viegas - Há uma cumplicidade entre mim e o Jaime Ramos. Eu sou um admirador da sua minúcia, da sua actividade de investigador. Nessa medida, ele é um personagem que existe independentemente de mim. Ao fim destes oito livros em que ele aparece como personagem, já não posso comandá-lo totalmente, como acontecia no princípio, até por respeito para com os leitores, que conhecem alguns pontos essenciais da sua vida. Ele tem uma biografia, uma vida cheia de memórias, tem tiques, hábitos, tem idade, defeitos, tudo o que acontece geralmente a uma pessoa viva. Nessa medida, do ponto de vista do “jogo de criação literária”, eu sou um biógrafo de Jaime Ramos. Não me desagrada totalmente essa opção, uma vez que eu acho que o romance tem de viver sobretudo de personagens, ou pelo menos funciona em seu redor. Claro que ele é o meu instrumento, mas enquanto instrumento puramente literário ele faz coisas que eu não posso fazer… Em cada livro há como que uma biografia de um personagem.
CLonline - Volto agora atrás, ao começo. Como surgiu a escrita deste romance?
FJV- Havia uma ideia inicial, a de escrever sobre um personagem que não queria regressar a Portugal depois de muitos anos a viajar pelo mundo, trabalhando aqui e ali. Com o tempo, a ideia foi mudando, e cheguei à definição de um personagem que tem laços a prendê-lo a todos os lugares onde Portugal esteve, Guiné, Brasil, Angola, por aí fora… E acabou refugiado em Manaus depois de tudo. Uma notícia no “Jornal de Notícias”, naquelas páginas do interior, acabou por dar corpo à ideia, foi uma espécie de motor para a ideia que eu já tinha e que encontrava, assim, correspondência com a realidade. Fundamentalmente, gente com vidas interrompidas pelas circunstâncias da História – da guerra colonial, de um casamento medíocre, de um passado funesto, de um passo mal dado. Coisas que aparecem em todos os meus livros. Acho que nunca há uma história precisa de um livro, uma história rigorosa… Por exemplo, em “Longe de Manaus” aparecem personagens que não fazem parte da história principal, mas pelas quais me apaixonei, como Daniela e Helena – elas teriam de aparecer, justamente porque na nossa vida também há gente que aparece sem razão. Aparece e pronto. Aparece.
CLonline - E poderia falar-nos um pouco do seu método de escrita para este livro?
FJV -Escrevo à mão e no computador, indiferentemente. Sirvo-me de muitas notas de viagem e, sobretudo, gosto sempre de manter alguma fidelidade em relação aos lugares. Manaus é Manaus, São Paulo é São Paulo, Porto é o Porto, Vila Flor é Vila Flor… De resto, escrevo em planos-sequência, sigo um método de montagem que me salva da dispersão. Estou sempre a voltar atrás, a corrigir datas, a obrigar-me a manter uma certa coerência naquilo que é o fio da narrativa. Quando chega a altura de escrever a versão final uso todos os materiais onde fui escrevendo – notas dispersas, cadernos de viagem, papéis soltos, blocos onde fui tomando nota de frases, pormenores, micro-histórias, genealogias…
CLonline - Uma curiosidade mais quanto à construção (ao nascimento) das suas personagens. Não consigo deixar de pensar nas palavras vestígio, desarrumação, nessa procura dos pequenos nadas de Jaime Ramos durante as suas investigações criminais. É também assim que encontra as suas personagens: entrando nas suas casas, no seus quartos, sabendo o que guardam no frigorífico, nas gavetas... Como investigou, por exemplo, a vida de Jaime Ramos?
FJV -Uma coisa que me impressiona muito é a natureza das coisas que se deixam dispersas depois da morte. Os bilhetes, a arrumação da casa, etc. Jaime Ramos percorre esses cenários fazendo o inventário de coisas interrompidas. Um homicídio, naquilo que tem de trágico, é sempre uma interrupção na biografia de alguém. E por isso ele pergunta-se sempre: o que faria este homem, ou esta mulher, se não tivesse sido assassinado? Mas a única ligação que temos com esse personagem são objectos deixados ao abandono, rastos, pegadas invisíveis numa casa ou onde quer que seja. É verdade que ele gosta de espiolhar nos frigoríficos porque tem essa obsessão, saber o que as pessoas comem, como elas se definem pelo que comem. No caso de Jaime Ramos, ele foi crescendo nos livros, e eu fui acumulando dados sobre a sua vida – o que veste, o que come, qual a natureza da sua conta bancária, onde mora, tudo pormenores que acho importantes para definir o personagem com alguma coerência. Imagino a sua cozinha, o seu quarto, recorto fotografias daqui e dali, desenho pormenores da varanda da casa dele, faço listas de compras que ele fará depois, vejo como são os pescadores da Ria da Aveiro, etc.
Tragédia e Drama
CLonline - Negada a estrutura convencional de policial (quer por si, logo no início do livro, quer pela sua leitura), porque recorre ainda assim a esse fio da investigação criminal?
FJV -Porque o policial garante um modelo de descoberta, uma história com princípio, meio e fim – embora não tenha, necessariamente, de começar pelo princípio, ou de terminar no fim. O policial é uma espécie de método, de ideal de perseverança numa investigação. Toda a literatura, nessa medida, é policial – além de se preocupar com a morte, o desaparecimento, o crime, o mistério, que são os motores da narrativa policial. No meu caso não me interessa o policial como interrogação social ou sociológica sobre o mundo do crime ou da violência. Não sou sociólogo nem o escritor tem de se preocupar com a sociologia; em meu entender, o policial constitui uma reinvenção do mundo a partir de uma tragédia (o crime) e de um drama (a necessidade de saber, a possibilidade de punir). Num outro livro, uma novela, “A Poeira que Cai sobre a Terra” (Visão, 2006), Jaime Ramos sabe tudo sobre os crimes, sabe tudo – mas recusa-se a avançar na investigação, vai acabar por eliminar os vestígios e as provas. Ele assume o lugar do juiz. Assume o lugar da moral. O policial tem essa possibilidade.
CLonline - Sente que convoca os diferentes “géneros” que povoam o seu romance, ou que eles simplesmente fluem até à sua escrita? Pergunto talvez que influências sente trazer para este livro, de que outros autores, de que outros livros?
FJV - Acho que “Longe de Manaus” está um pouco marcado pela literatura brasileira dos anos noventa. Rubem Fonseca, Noll, Assis Brasil, Hatoum. Eles são excelentes escritores, creio que a literatura brasileira tem uma vitalidade e uma originalidade muito maiores do que a ficção portuguesa de hoje. E reinventaram a forma de contar uma história na nossa língua. Mas não abdico daquilo que se costuma dizer que os meus policiais são: um cruzamento entre poesia e ficção. E humor. Gosto que Jaime Ramos tenha humor. Não gostaria dele se não tivesse humor.
CLonline - Habitado por tantos lugares, por tantas personagens que o investigador Jaime Ramos vai descobrindo, existe aqui o retrato do ‘português’?
FJV - De uma certa forma de ser português, sim. O português que conheceu África e o Brasil e para quem a pequena pátria é uma ameaça. Não sou patriota nem nacionalista, como, aliás, acontece com quase todos os portugueses. Há uma cena no livro, uma viagem até Trás-os-Montes, em que Jaime Ramos está fascinado pela paisagem, pelas montanhas – e aparece-lhe uma lixeira a céu aberto, lixo ao longo das estradas. Não é um país limpo. É um país bonito, sim, mas encoberto pela vileza e pelas lixeiras contínuas. E um país inexplicavelmente triste. Mas é o nosso.
CLonline - O como se diluiu (transformou) esse português pelo mundo?
FJV - Dilui-se muito bem. Provavelmente, é o povo que melhor se mistura com os outros, que melhor assume outras condições culturais, outras influências, outras gastronomias, outras línguas. Acho isso uma vantagem enorme. Acho que é uma das nossas melhores características, que, aliás, mitigou um pouco o nosso racismo, o nosso colonialismo – que nunca foram tão abjectos como o inglês ou o espanhol, por exemplo. Acho que os portugueses ficam melhores quando se misturam com outra gente ou quando conhecem outras terras. Quando se libertam da pequena pátria.
CLonline - O que pode também levar à pergunta da língua. Usa a sintaxe e fraseologia desses diferentes lugares no mundo onde se fala o português. Mais uma vez, essa foi uma opção natural de escrita? Ou uma opção deliberada?
FJV - Foi uma opção deliberada. Vivi cerca de ano e meio, dois anos, no Brasil, e percebi que os personagens brasileiros tinham de falar em português do Brasil, o que, para mim, nem representa uma grande dificuldade, uma vez que escrevo correntemente em português de lá. E há uma certa poesia nessa mistura, nessa perda de gramática.
CLonline - E nesse encontro com esses diferentes formas de falar o português, sente-se uma diferença de alma, uma diferença do sentir, de viver?
FJV -Sim, naturalmente. Necessariamente. O português é uma realidade que existe independentemente de nós. Já não somos os proprietários da língua – somos ocupantes, como os brasileiros, os angolanos, os moçambicanos, os cabo-verdianos. E é tão diferente a forma de pronunciar, dizer, falar – como de conhecer o mundo através de um sotaque diferente. Esses meus tempos no Brasil foram os mais felizes da minha vida.