4.9.07

«Lourenço Marques»
À Solta


[Entrevista ao site do Círculo de Leitores]


Cachimbo, imagens, montagem e banda sonora. O papel e a caneta foram substituídos pelo computador. Manuscritos e manuseáveis continuam os caderninhos de apontamentos que guarda entre viagens. Para este livro foram seis ou sete, não precisa. Nem precisa o exacto balanço entre oficial e anónimo. Ouviu, pesquisou, conheceu os lugares de um dito paraíso.

Entre as acácias, o calor e a ruína a travessia impôs-se dura. Miguel, o seu protagonista, regressa a Maputo passados mais de vinte anos com o pretexto de encontrar Maria, o seu primeiro amor. O autor, curioso da Lourenço Marques que sempre ouvira contar, regressa a um tempo perdido e faz-nos perder na paisagem de personagens, suspeitos e ironias. Seguindo a trama de um policial rompe na verdade com um complexo. O complexo colonial.

À solta mas com mapas Francisco José Viegas falou connosco na redacção da «Grande Reportagem». Jornalista, crítico e escritor, colaborou no JL, no Expresso e no Semanário tendo sido director da revista literária LER durante doze anos. Da poesia ao teatro, do romance ao conto, rejeita pretensões e aponta a brevidade dos momentos de revelação. A conversa correu leve, entre as gargalhadas e inflexões que a transcrição da entrevista não captam na íntegra. Podemos contudo adiantar que ao som das respostas o autor acrescentou as músicas que ouviu durante a escrita do livro. Privilégios da entrevistadora que aqui partilha as várias hipóteses de leitura de um livro que se pretende avesso a caminhos em linha recta.

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Círculo de Leitores online - Como nasceu este livro ?

Francisco José Viegas - Como quase todos os meus livros, nasceu de uma viagem. Neste caso uma viagem a Moçambique. Depois de uma primeira passagem pelo país fiquei com a impressão que tinha uma história a contar, uma história com mistura de policial. Com o tempo dei-me conta que o que tinha a contar ultrapassava os limites do policial. Por isso voltei quatro vezes a Moçambique para apanhar histórias, para encontrar personagens - se bem que no final tenha acabado por perceber que os grandes personagens da história estavam aqui em Portugal.

CLonline - «Lourenço Marques» é um livro repleto de memórias, detalhes, sons, cheiros e imagens. Como é possível chegar a esse tipo de detalhe sem ter de facto vivido em Moçambique no tempo que descreve ?

FJV - Trabalhando. As viagens a Moçambique foram muito simples, viagens de terra em terra, de jipe, de «chapa» (o autocarro colectivo), viagens de reconhecimento. Depois existe o espantoso, o lado espantoso da descoberta de África por um europeu.

CLonline - Viaja sozinho ?

FJV - Algumas vezes sim.

CLonline - Tira apontamentos, anota?

FJV - Vou à solta. Se uma pessoa não for à solta, se não estiver disponível não encontra nada, ou então só encontra aquilo que quer encontrar. Nesse caso é melhor não viajar. Embora eu soubesse onde queria ir - à ilha, a Nampula, Pemba.

CLonline - E porquê esses sítios em específico?

FJV - Porque eram os sítios que haviam marcado a memória das pessoas que eu tinha conhecido. Eu brinco muito com esta história, mas é verdadeira: o primeiro umbigo de mulher que vi foi o de uma rapariga do meu liceu que tinha vinda de Moçambique. Sempre me fascinou essa gente vindo de Moçambique. Representavam um mundo extraordinário de pessoas completamente diferentes dos portugueses da metrópole. Vinham de um mundo mais livre, mais apetitoso, de um local mais aberto, com sol, com outros hábitos, de um mundo em que se bebia «Coca-Cola». As pessoas não se lembram mas em Portugal não se vendia «Coca-Cola», era proibido.

CLonline - Durante as suas viagens falava com pessoas que já lhe tinham sido indicadas ou houve uma procura de testemunhos ?

FJV - Consultei os arquivos históricos de Maputo, os jornais da época, e entrevistei algumas pessoas, quer dizer, não entrevistei, falei com as pessoas. Não há no livro uma fonte oficial. Não digo a transição do poder em Moçambique foi ‘assim’. Usei vozes comuns - mais do que vozes anónimas, vozes comuns. O método de escrita passou muito pela recolha de material. Só que, e este é o drama do livro, eu sabia que não seria capaz de escrever o livro como planeado, como um policial, e durante muito tempo o livro esteve parado. No tempo em que estive parado escrevi mais dois livros. O grosso de «Lourenço Marques» acabou por ser escrito em 2002.

CLonline - E o que o fez retomar a escrita ?

FJV - O ter rompido com um complexo, o complexo da culpa colonial. Só acabei o livro quando eu próprio consegui romper com esse complexo. Uma senhora perguntou-me porque é que eu não tinha dado o título de «Maputo» ao livro, e eu respondi que nada tinha a ver com Maputo. Esta história não é uma história sobre moçambicanos, é sobre a África dos portugueses. Não podemos arrancar a memória. Não podemos branquear o colonialismos, nem os seus crimes, nem a violência, embora eu não tenha tentado fazer uma história dessa violência colonial nem do racismo. Procurei o lado feliz. Mas o livro não deixa de ser sarcástico com os brancos.

CLonline - A nostalgia atravessa aliás todo o livro.

FJV - Conheci muita gente em Portugal com saudades de um lugar chamada Lourenço Marques. Com a perda da cidade houve a perda de um mundo, a perda real de pessoas que tiveram de reconstruir a sua vida a partir do nada. E o Portugal dessa época foi muito hostil com os retornados. Uma posição que hoje, a esta distância, me parece injusta porque eles foram uma força transformadora, com capacidade de iniciativa, e acabaram por mudar Portugal e a estrutura económica do país. Também mudaram as nossas ementas nos restaurantes, a forma de vestir, de falar, o nosso imaginário que passou a ter novas referências. Quando se diz o nome ‘Lourenço Marques’ essas pessoas parecem ficar com um clarão no olhar, um clarão de nostalgia, não de saudade troglodita colonial.

CLonline - Miguel, o protagonista, procura Maria de Lurdes ou procura as suas memórias ?

FJV - É difícil separar as duas. Há duas perdas, a perda de um mundo e a perda de um amor não concluído. As duas cruzam-se.

CLonline - Existe também uma certa ideia de paraíso perdido. Esse paraíso localizado no passado é já uma elaboração da memória ?

FJV - O paraíso só existe no passado. As coisas no passado tem uma textura que não têm no presente, a nossa memória é muito selectiva e as coisas voam-nos... Por outro lado aquele passado está de facto marcado por várias coisas, pelo amor, pela família, pela natureza. A vida em Moçambique era muito melhor que a vida que encontraram aqui. Era uma vida mais livre. Se pensarmos que em Moçambique passavam filmes proibidos aqui percebemos a diferença de hábitos sociais, sexuais e culturais - muito mais livres que os nossos em Portugal. E, realmente, o calor afecta e dilata os corpos.

CLonline - Das histórias que recolheu e ouviu quais as que usou no livro ?

FJV - Conto histórias que aconteceram e outras não. Algumas das histórias coincidem com o período de loucura que se viveu em Moçambique, por exemplo, uma pessoa podia ir a sair do cinema, no centro de Maputo, e pediam-lhe os papéis. A pessoa dizia que não tinha, que ia buscá-los e era convidada a entrar num veículo. Uma semana depois estava no Niassa. Geralmente existe o mito de que o autor tem imensas coisas a dizer sobre o livro. Eu fui fazendo-o, escrevendo-o. Algumas personagens tocaram-me de uma maneira quase brutal, como o médico de Lichinga que mantém um resto de dignidade notável - e ainda hoje dou por mim a pensar na pessoa real por detrás do personagem. O xeque Abdurrazaque também existe e tem este nome.

CLonline - Mas quando parte para a escrita já tem as personagens delineadas ?

FJV - Sabia quem era Maria de Lurdes, que ela se atirava à piscina e que era perversa o suficiente para despir o maiô. Tinha uns seis ou sete blocos de apontamentos a que ia buscar o que precisava, pormenores que não pareciam importantes mas que depois, de repente, se revelaram explosões. O meu método é muito cinematográfico, funciono por imagens, por cenas. Escrevo directamente no computador, escrevo sempre acompanhado de um conjunto limitado de discos, que gravo no computador e que funcionam como banda sonora. Cada personagem tem uma canção, cada ambiente tem uma música, o que me ajuda a escrever. A dada altura já não podia ouvir Tindersticks...

CLonline - Que eram a banda sonora de quem ?

FJV - Do Miguel. Da Sara é uma confusão, desde Chillout a música mediterrânica. O Domingos Assor é muito música instrumental por causa dos seus delírios.

CLonline - A trama policial acaba por ser um pano de fundo, um pretexto ?

FJV - Nos outros livros o policial é declaradamente um pretexto. Neste é menos. Acontece um crime e existe uma investigação pelo que precisava de um personagem que fosse o Domingos Assor, que se está nas tintas para o dito passado glorioso. Ele sabe tudo e até ao fim mantém a esperança de que Miguel mereça saber a verdade. Leva o saco de Maria quando se vai despedir dele ao aeroporto porque espera que no último instante ele mereça a verdade. Mas o Miguel desiste, o Miguel é no fundo isso mesmo.

CLonline - Miguel não queria de facto encontrar Maria ?

FJV - Ele queria encontrá-la, o problema é que só recuperamos o passado quando o merecemos. Às vezes só conquistamos uma felicidade passada quando somos suficientemente loucos para, num gesto, colocarmos tudo em causa. Foi o que a Maria fez, mas Miguel nunca o fará. No livro alguns dizem que a Maria morreu, outros que foi ela quem matou Madane, são hipóteses. Nunca revelo o criminoso nos meus livros, sugiro apenas que poderia ter sido este ou aquele.

CLonline - Joga então com o leitor como se também ele tivesse de merecer a verdade. A irresolução é então aparente ?

FJV - Há sempre um sinal de quem é o criminoso, há sempre uma frase, um parágrafo onde a verdade aparece. Mas também o leitor tem de perceber que a vida não tem um único sentido. Mas sim, há sempre um sinal de como a história se poderia ter resolvido.

CLonline - Diria que há um ciclo de vingança inerente aos acontecimentos ? O português Zacararias dos Anjos morre nas águas onde Gungunhana fora preso por Mouzinho; na fotografia do paraíso de infância de Maria, Assor detecte o então criado Madane que se torna, com a independência, um temido capitão dos campos de reeducação, que será morto por um dos seus conterrâneos. Cumpre-se uma vingança ? Ou uma forma de justiça ?

FJV - A História é feita de vinganças. Há um ciclo de violência, um ciclo de racismo contra os brancos, e agora um tentar fascinar e cativar os fazendeiros brancos como aconteceu no caso do Zimbabwe. São os ciclos da história.

CLonline - Mas a sequência de acontecimentos, em específico a ligação entre esses três momentos, é uma acaso da História ?

FJV - É uma inevitabilidade. A História não pára, e sobretudo não pára em nome das loucuras que se cometem em seu nome. Era inevitável que as coisas acontecem-se daquela forma, que houvesse guerra, que surgisse uma perseguição aos brancos, que os brancos moçambicanos fossem mais radicais que os negros, que com o tempo as pessoas sentissem saudades. A História implica ciclos de aceitação e recusa, ciclos de fascínio e de repulsa. Quem é que em perfeita saúde mental aparecia na televisão a dizer que os portugueses deviam ser todos queimados ? No entanto era natural que isso acontece-se e que alguém, passados trinta anos dissesse, acabou, acabou o luto.

CLonline - Como falam hoje os moçambicanos desse período ?

FJV - Depende da geração. A geração com mais de cinquenta anos tem uma certa memória, uma memória que não é totalmente má. As pessoas de trinta a quarenta anos vivem entre o estar-se nas tintas e o reconhecer que há uma ligação estreita. Para os adolescentes os portugueses são apenas brancos como os holandeses, os franceses.

CLonline - As cidades que visitou guardam marcas da presença portuguesa ?

FJV - Em todos elas existem marcas dessa presença, mesmo nas cidades mais destruídas. Essa é também uma das inevitabilidades da História: o ser impossível apagar a passagem dos portugueses. No tecto da Igreja da Nossa Senhora da Consolação dos Militares, no Brasil, foi pintada a batalha dos montes] Guararapes. A primeira em que se fala de uma consciência brasileira, em que portugueses, índios, negros e pessoas que já tinham nascido no Brasil lutaram contra os holandeses na recuperação do Nordeste. O quadro é genial mas alguém teve o cuidado de, no final do século XIX, tapar as bandeiras dos soldados portugueses. Vemos os soldados no campo de batalha sem bandeira.

CLonline - Então o apagamento existe.

FJV - É inevitável que as pessoas apaguem o que lhes foi doloroso. Os portugueses também não eram pêra doce. Temos em África um historial de violência, embora com o tempo isso se relativize e compreenda.

CLonline - Queria voltar precisamente ao português que no seu livro decide ficar, o último médico branco em Lichinga que fala de deus como um controlador aéreo.

FJV - Ele é o branco que assiste ao delapidar do país, que assiste à violência. Os portugueses têm memória da guerra colonial mas não da guerra civil. Não temos ideia da violência da guerra civil em Moçambique, dos miúdos que foram obrigados a matar os pais para provar a sua lealdade ao movimento, obrigados a denunciá-los, a beber o seu sangue. Para quem anda pelo país e vê as povoações abandonados, as carruagens calcinadas, os buracos abertos, percebe que aquele é um mundo muito estranho. E ele, o médico branco de Lichinga, assistiu a isso, à violência, à hipocrisia ocidental. Para além disso ele é um homem doente que sabe o seu destino, que sabe que vai morrer...

CLonline - E que não parece muito desesperado com isso...

FJV - É médico e sabe que não pode fazer nada. «Lourenço Marques» é também uma história sobre o encontro com Deus. O próprio Domingos Assor tem uma visão dessa transposição dos ritos monoteísta para a África - é aliás impossível estar em África e não sentir esse conflito. Existem afinal duas relações possíveis com Deus. De mal-estar: como é possível que Deus exista e que exista a miséria e a violência da guerra? E existe outra saída: o inexplicar o mundo. O médico diz que deve haver alguém a controlar o tráfego aéreo porque existe tanta ordem e tanta desordem no mundo que deve haver alguém que estude as coincidências, alguém que faça as suas excepções. As pessoas mais religiosas são, do ponto vista formal, a Sara, uma judia, e o Domingos Assor. O xeque que prega partidas citando versículos do Alcorão ao contrário para que Miguel encontre verdadeiramente o caminho

CLonline - O médico diz a Miguel que «Não é qualquer um que pode chegar ao lago e olhá-lo e voltar, regressar a casa. Há sempre qualquer coisa que fica a marcar-nos para sempre». O que quer dizer com isso ?

FJV - Não se pode passar pelas coisas impune. Ver o lago Niassa implica passar por uma certa provação. Por isso depois de uma viagem de seis dias de carro quando se chega ao lago parece ter-se chegado ao princípio do mundo.

CLonline - Para além da beleza descreve a ruína.

FJV - Os portugueses deixaram um mundo europeu de ordem, autoridade, disciplina. Tudo isso foi sendo abandonado. Há uma luta muito séria em todos esses países contra a ruína. Quando se assiste ao que se passou no Ruanda e no Zaire percebe-se que a dignidade humana acabou. No judaísmo a história deixa de ter sentido a partir do holocausto, a sohoah, em que o mal anda à solta, um mal puro, uma violência sem explicação. Quem viu o Ruanda não esquece. Em poucas dias foram milhares de mortos. Como é possível a poesia depois de Auschwitz ? Uma outra pergunta: porque é que o povo hebreu ficou quarenta anos no deserto e não foi directamente para a terra prometida ? Porque tinham de passar aqueles quarenta anos. Esses quarenta anos são o espaço de uma geração. Quer dizer, só era permitida a entrada na terra prometida aos que não tinham memória do horror. É exactamente o que se passa com Moçambique, quando passar uma geração, a das pessoas que conheceram o terror, a morte, os amputados, os deslocados, então será possível um mundo melhor. O símbolo da travessia do deserto, a metáfora do estar perdido, é também uma das histórias do livro. É preciso deixar passar o tempo.

CLonline - Visita na sua escrita a poesia, a ficção, viagens, conto, teatro, crítica. A escrita de diferentes géneros exigem-lhe diferentes disposições ? E consegue escrever ao mesmo tempo em géneros distintos ?

FJV - Não, tenho de os separar. O esforço é o mesmo, o tipo de trabalho é que é muito diferente. Não tenho nem lei nem ordem para escrever poesia, acontece ou não. O romance exige coerência, dados - um personagem não é um nome, é um banco de dados e as personagens de um romance só são verdadeiras quando começam a voar, quando começam a ter vida própria.

CLonline - Qual o género em que entre aquilo que quer escrever e o que consegue escrever o abismo é menor ?

FJV - Não há um género, existem certos parágrafos. Certos parágrafos em que me sinto melhor, momentos em que se toca algo com o sabor de revelação, em que podemos dizer “isto fica”. Em «Lourenço Marques» tenho dois ou três momentos assim.

CLonline - Quais ?

FJV - O delírio do Domingos Assor, a fala do médico e uma parte da conversa do Domingos sobre África, sobre o mundo dos brancos e dos pretos e como nunca conseguiremos explicar o que opõe ou une homens e mulheres, o que opõe ou une brancos e pretos, no fundo o que une os contrários. Nessa fala o Domingos Assor encontra uma explicação. Diria que esses três momentos não estão mal conseguidos.

CLonline - Permita-me a invasão (tal como o polícia Assor invade “uma vida inteira” ao vasculhar os objectos deixados por Maria numa mala). Se numa viagem perdesse a sua mala que objectos lá encontraríamos ? E que objectos preferiria que não encontrássemos ?

FJV - Preferia que não encontrassem a minha mala. Não tenho da vida uma ideia muito gloriosa ou cheia de charme, tenho da vida a ideia de que se repetem sempre as mesmas asneiras e patifarias. Encontrariam na minha mala coisas normalíssimas e pecaminosas como se encontra em todas as malas, e encontrariam mapas. Mapas para as viagens que gosto de fazer, meia dúzia de livros, meia dúzia de discos necessariamente, fotografias das pessoas que eu amo, das pessoas de quem dependo, e um poema ou outro, solto, de Yeats. Pouco mais.