1.5.08

O beijo de um académico em Paris.


O beijo é talvez uma matéria antiga.
Assunto de poesia contemplativa,
bom para versos parnasianos. Uma flecha,
o tímido clangor, a vibração do arco,
sílaba, medida, questão de técnica, afinal.
Há uma grande literatura, arrumada,
sobre a melancolia do beijo: amantes
que se arrastam no meio das pontes,
palavras sérias, despedidas, mal-estar,
quartos de hotel, um espelho, a luz,

e Paris, as cidades onde outros beijos
foram famosos, Veneza, Praga, Florença.
Os académicos flutuam com saudades
desses beijos de Paris, lânguidos ou
a preto e branco, desbotados, cheios
de literatura, de espuma e de eternidade:
sombrio retrato do beijo, entre legumes
dos mercados e estátuas dos palácios,
penumbras das praças, empedrados
onde alguém acena com um lenço.

Estranha dívida da imaginação, questão
de técnica, afinal: havendo cenário,
então há um beijo, entre muros e rosas;
os amantes merecem esse entardecer,
nenhum outro beijo é tão nostálgico como
o beijo que nunca aconteceu, perdido
no meio de um livro, como uma gardénia
entre chilreios neoclássicos, aflorada,
desfolhada, morrendo devagar, apenas
uma imagem dramática, aprendida de cor.

Simples amor europeu, como escrevem
os querubins, doentes de má bibliografia,
tingidos de palidez, temendo a ironia.
“Ali nós estávamos cercados, era o Maio
de sessenta e oito, acabávamos de inventar
o mundo.” J’aime votre librairie, madame.
O primeiro beijo, aquele mais clandestino,
aconteceu entre as estantes de psicanálise
e restos de filosofia, tudo matéria nobre,
como o beijo. Questão de técnica, afinal.

Como uma mancha na memória, esse beijo
de Paris – com tradição, prefácio, notas,
livros, distinção, adultério, casas vazias
anoitecendo em bairros perto do Sena,
discos da Greco, baladas, despedidas,
comboios no meio do Outono, sufocantes.
Talvez fique apenas um retrato, um veneno,
uma revolução reconciliada com os deuses,
um rasgão na camisa, uma memória onde
tudo apodrece, devagar, no meio da febre

ou daquela solidão que destroça a vaidade.
Ah, como nós éramos revolucionários,
como o vinho e os livros eram tão franceses,
como o mundo tinha coisas tão fantásticas,
mulheres abandonadas, filhos aqui e ali,
chuvas, e uma pátria onde se podia regressar,
relâmpagos, canaviais, enredos, infortúnios,
segredos, telhados de Paris a meio da tarde,
esplanadas onde os filósofos adormeciam
– bêbedos e consentidos, murmurando

desculpas e vagas propostas de equilíbrio.
Questão de técnica, afinal, como as coisas
que agonizam no meio, bem no meio da vida.
Sereníssimo beijo académico, saudade
de como o mundo era perfeito, falado em
francês, sem escuridão, calafrio, ou a ironia
dos descrentes. Eram dentes assim, levemente
manchados pelos Gitanes, línguas pequenas,
cheias de pudor a princípio, uma gota de suor
no decote (faz calor em Paris durante o Verão).

Tudo o resto, ou quase, era literatura, árdua
e elíptica, obscura, dissolvida e depois escrita
no meio de incêndios, cheia de jogos e sinais,
como um beijo que interrompe a cegueira
numa esquina do Sena, numa ponte humedecida,
num sótão cheio de cadernos e de vinho barato.
Coisas românticas. Vulcões abertos sobre
a vida inteira. Negrume de vinganças tardias.
Inquietações, velhos retratos do Che, coitado,
autoridades, clérigos, melancolias e suspiros.

Talvez seja da altitude; as livrarias de Paris
ficam acima do nível das águas do mar,
mas não tanto, afinal. As universidades também.
E as ruas do Quartier Latin, ensombradas
por tanta melancolia, lua-de-mel, passeios
no meio da chuva, abrigos de amantes nos livros,
fraquezas espirituais. Pequenas cedências
começam aí, quando se perde uma namorada
que não sabe o nome dessas ventanias,
tudo por causa dos livros e do lixo de Austerlitz.

Muitos anos mais tarde, olhando a sombra
sem olhar a sua morte: a vida é um monólogo
cheio de literatura, remorsos, coisas perdidas,
textos sagrados, obra irrelevante, implorando
saúde e reconhecimento. Ah, o verdadeiro beijo
(questão de técnica, afinal) só existe em Paris,
pobre beijo a preto e branco, aristocrático, triste.
O sopro da humanidade não interessa; apenas
vagamente existe em redor, empurrado
pela vileza, negligente, cheio de más traduções.

In Se me Comovesse o Amor. Quási, 2007.

Sondagem Expresso/SIC/RR/Eurosondagem

Apesar de tod a contestação, o Partido Socialista continua, a um ano das eleições legislativas, no limiar da maioria absoluta, e José Sócrates com um saldo de popularidade invulgar. Este mês o PM volta a subir mais umas décimas estando quase nos 30%, sendo apenas ultrapassado pelo Presidente da República. À esquerda do PS, PCP e BE mantêm a tendência de subida, atingindo – quando somados – 18,8% das intenções de voto. Já os partidos à direita dos socialistas – PSD e CDS/PP – reúnem 33,2% das intenções de voto, estando assim abaixo do resultado obtido nas últimas eleições legislativas.

No mês em que se demite e depois de conhecida a sua decisão, Luís Filipe Menezes obtém a sua maior subida e atinge o saldo positivo que lhe escapava há seis meses estando próximo dos 4%.

Por outro lado, Cavaco Silva regista a sua maior quebra na bolsa de popularidade, porventura resultado da condescendência com que tratou o presidente do governo regional da Madeira durante a sua recente visita à região. O Presidente da República cai 7,4% em termos de popularidade podendo inferir-se deste resultado que, ao contrário da doutrina fixada por Jorge Coelho para o PS, quem não se mete com Alberto João Jardim, leva!

Que segredo terá José Sócrates para manter a sua popularidade tão elevada? Será mesmo que, para os continentais, elogiar Jardim é motivo de punição? \Se sim, que leva o líder regional a sonhar a liderança do PSD?

18.4.08

«Desde que os autores não tenham contratos assinados
é evidente que os posso trazer»


Meses depois da compra das Edições Asa pelo grupo Leya, o editor Manuel Alberto Valente,
62 anos, bateu com a porta e explica porquê. Está a preparar um novo projecto editorial

Manuel Alberto Valente, 62 anos, entrou para as Publicações Dom Quixote, em 1981, como director editorial. Dez anos depois foi convidado por Américo Areal para as Edições Asa, onde ficou 17 anos. Primeiro como director editorial e, mais tarde, como director-geral especialista no catálogo de literatura. No ano passado, Américo Areal vendeu a sua empresa familiar a Miguel Pais do Amaral. Este criou o grupo editorial Leya, que hoje inclui, entre outras, a Asa, a Dom Quixote, a Texto e a Caminho. Em Março, Manuel Alberto Valente, na altura editor da Asa com a responsabilidade dos portugueses e dos autores de língua espanhola e francesa, apresentou a demissão.

PÚBLICO - Quando se demitiu das Edições Asa, não quis revelar as razões que o levaram a abandonar o grupo Leya. Pode fazê-lo agora?
MANUEL ALBERTO VALENTE - Aquilo que me levou a sair foi um enorme desencanto profissional. Poder-se-á pensar que é uma posição contra a concentração editorial, mas, à partida, não tenho nada nem contra os grupos nem contra a concentração. Temos que fazer uma distinção clara entre grupos que são do livro e grupos que não o são. Concretizando: a Bertelsmann ou a Porto Editora são grupos do livro, nasceram e viveram com o livro toda a vida.
Têm tradição na área.
Há uma tradição familiar de negócio do livro. Os outros dois grupos que estão neste momento no mercado português - o Explorer Investments e o Leya - não têm nada a ver com o livro. Estão no livro por mero negócio. O Explorer é um fundo de investimento e está no livro até ao momento de poder ganhar mais-valias com a venda das editoras que comprou e dizem-no abertamente; e o grupo Leya, embora o esconda, está na mesma posição. Está na área do livro até lhe surgir uma oportunidade boa de vender o grupo a qualquer comprador nacional ou estrangeiro.
Porque é que o esconde?
Porque não tem assumido abertamente que comprou para vender.
Desencanto profissional porquê?
Quando a Asa foi comprada, pensei que o grupo Leya ia trazer à Asa, por um lado, dinheiro, mas, por outro lado, organização, eficácia, profissionalismo. Portanto, olhei com muito optimismo e com uma boa expectativa a entrada da Asa no grupo. Curiosamente, o que a prática me veio revelar foi que dinheiro passou a haver, efectivamente, mas tudo o resto era mentira. A desorganização é completa, a falta de eficiência é completa, a falta de profissionalismo é completa. A Asa antiga era um mimo de organização e de excelência de trabalho comparada com aquilo em que a Asa foi transformada.
Não foram então questões de opção editorial.
Embora aí também houvesse desinteligências. Foi realmente ver-me rodeado de uma falta de eficácia, de organização e de profissionalismo com a qual não podia pactuar. Ajudei durante 17 anos a construir a Asa, não podia ser cúmplice da sua destruição. É um desencanto muito grande quer com as políticas editoriais que estão a ser seguidas, quer com a falta da competência profissional da maior parte dos quadros que entraram para a estrutura com a constituição do grupo.
Construir um grupo com várias editoras que nunca trabalharam juntas demorará o seu tempo em termos de logística e organização.
Julgo que já teriam tempo para isso. As Edições Asa foram integradas em Setembro. Houve, evidentemente, uma confusão inicial, mas estamos em Abril e não há sinais. Todos os sinais que foram dados não auguram nada de bom. Isaías Gomes Teixeira, administrador executivo do grupo Leya, no momento em que me despedi, disse-me que compreendia perfeitamente que um homem que tinha idade para ser pai dele já não se adaptava a estas novas dinâmicas do mundo editorial. É um bocado verdade.
Porquê?
Sou de uma geração e tenho uma escola em que houve sempre uma enorme preocupação com a rentabilidade dos projectos, mas essa rentabilidade passava por uma frase que repeti muitas vezes: "Publica-se o que dá para se poder publicar o que não dá." Uma das primeiras frases que Isaías Gomes Teixeira disse quando entrou para o grupo foi: "Mas para que é que vocês publicam o que não dá?" Isto transmite toda uma filosofia com a qual não estou minimamente de acordo.
Houve uma diminuição da importância da Asa dentro do grupo ao lado de editoras como a Caminho e a Dom Quixote?
Não, não é isso que está em causa. A Dom Quixote, para todos os efeitos, só agora é que está a começar a ser integrada. Há, efectivamente, uma diminuição da capacidade de actuação da editora que se está a reflectir nas próprias vendas e na maneira como os livreiros estão a encarar o trabalho do grupo, que do ponto de vista logístico é desastroso.
Uma das inovações da Leya foi a integração de um gestor de marca a acompanhar o editor.
Essa é uma ideia contra a qual não tenho nada, isto se os gestores de marca escolhidos fossem pessoas habilitadas a cumprir esse papel. O que acontece é que, pelo menos em alguns casos, as pessoas que foram escolhidas como gestores de marca não têm a mínima ideia do negócio editorial e, portanto, não estão em condições de poder cumprir as suas funções.
Abandonou o grupo Leya por sua própria vontade, não recebeu indemnização, não negociou a sua saída. E agora?
Tenho estado a construir um projecto que quero que seja consistente, de qualidade, de excelência. E há duas hipóteses: ou avanço para esse projecto sozinho, ou encontro um interlocutor que o aceita e inclui numa estrutura editorial já forte. Como é ambicioso, gostava de o ver integrado numa estrutura que lhe desse garantias de eficácia.
Pode ser mais concreto?
É um projecto editorial que passa pela publicação de autores portugueses e de obras traduzidas na área da ficção e da não-ficção. Não é para publicar os restos do que sobra dos grandes grupos. Quero que possa ser um projecto concorrente dos grandes grupos. Quero publicar livros já este ano, na rentrée, em Setembro.
São livros que já estavam acordados?
Não posso trazer das Edições Asa livros previstos no seu programa editorial e que já estavam contratados. Mas autores posso. Desde que os autores não tenham contratos assinados para obras novas, evidentemente que os posso trazer. E conto com eles, aliás, quer portugueses, quer estrangeiros.

Público, 18 de Abril 2008

28.3.08

O GOSTO ÚNICO
















José Eduardo Agualusa | Capital | Luanda

Não posso dizer que tenha ficado surpreendido com algumas das reacções a uma entrevista que concedi recentemente ao Semanário Angolense. Atravessamos um tempo um pouco estranho, de transição de um regime de pensamento único para aquilo que, espero, venha a ser uma verdadeira democracia. O que diferencia uma ditadura de uma democracia é a pluralidade de ideias e de opiniões sobre qualquer assunto, e a forma como essas ideias são recebidas não apenas pelos governantes, mas pela generalidade da população.

Os ditadores esforçam-se por estabelecer primeiro uma determinada ideologia política, mas raramente se detêm aqui – tentam a seguir impor a toda a gente os seus próprios gostos sobre música, literatura, artes plásticas, desporto, sexo, ou mesmo moda. Hitler, que foi um medíocre pintor de paisagens, embirrava com o cubismo e o expressionismo, classificados como “arte degenerada”. As obras de grandes pintores, como Chagall, Mondrian ou Max Ernst, foram então consideradas produtos de mentes doentias. "De agora em diante iremos empreender uma guerra implacável contra os últimos remanescentes da desintegração cultural”, assegurou Hitler num famoso discurso sobre arte moderna, em 1937: “Por tudo que nós apreciamos, esses bárbaros pré-históricos da Idade da Pedra podem retornar às cavernas de seus ancestrais e lá realizar os seus rabiscos primitivos internacionais”. Os seguidores de Hitler, evidentemente, elogiavam os dotes artísticos do fuher. Mas, claro, quem acabou triunfando não foi Hitler, e sim os artistas ditos degenerados.

Mobutu não gostava de calças à boca de sino. Mugabe odeia (e persegue) os homossexuais. No Chile de Pinochet, e em Moçambique, no tempo de Samora Machel, jovens com cabelo comprido não eram muito apreciados pelo regime.

No seio do partido no poder confrontam-se hoje em dia democratas autênticos, democratas de fantasia – que ainda há poucos anos defendiam o sistema de partido único –, e uma mão cheia de órfãos da ditadura, mortos-vivos que não conseguem adaptar-se aos novos tempos e insistem em classificar como traidores à pátria todos os que se atrevam a contestá-los. Partido e pátria são para estas pessoas exactamente o mesmo, ou, ao menos, o partido constitui uma extensão da pátria.
Estes zombies são hoje, dentro do MPLA, um arcaísmo deselegante. Tenho a certeza de que incomodam, com a sua brutalidade, os próprios companheiros de partido. Julgo que têm os dias contados. Já não é possível, como se fez em 1975, acusar adversários políticos de se alimentarem de carne humana (recuperando desta forma, e talvez não por acaso, uma das mais racistas e abjectas fantasias coloniais). Felizmente esse tempo passou.