7.11.05

COISAS ARRASTADAS PELO VENTO. O arrastão de Carcavelos surpreendeu muita gente e eu acho que há razões para isso. Não vale a pena sermos cínicos ao ponto de dizer que “estava escrito” – isso tanto serve para ser usado pela extrema-direita racista, que culpa “os pretos e os estrangeiros” pelos desacatos na velha pátria (como se fôssemos todos branquinhos e enjoados), como pela esquerda fatal que aprecia o retrato de vitimização “dos marginalizados e dos excluídos” (como se em Portugal houvesse apartheid). Esse caldeirão é redutor e nele cabe tudo o que não vale a pena discutir com seriedade. Na verdade, não estava escrito. Poderia acontecer, mas a dimensão do estrago tomou proporções alarmantes, com as televisões a anunciar mais “arrastões” onde se tratava apenas de assaltos e a tremer de comoção com um roubo por esticão cometido por um “cidadão de raça negra”.
Há uns anos, era Fernando Gomes ministro da Administração Interna, e uma actriz foi assaltada. A actriz murmurou ainda que Lisboa era pior do que o Rio de Janeiro. Só umas semanas depois toda a gente se deu conta do exagero e do ridículo. Imediatamente, explodiram comentários, na imprensa e na rádio, sobre o mal que os pretos estavam a fazer à pátria, ainda que o caso não tivesse registado as proporções trágicas do Meia Culpa, em Amarante (em que só brancos estavam envolvidos, portanto). A paranóia foi gritante. As televisões adoram.
Esta questão do racismo volta de vez em quando à tona. Uns energúmenos organizaram uma manifestação “patriótica” para pedir que os pretos sejam expulsos e a pátria salva da invasão dos estrangeiros. A praia de Carcavelos, entretanto, voltou à calma com menos gente, que prefere outras paragens. O problema de Carcavelos, aliás, não é de integração racial nem de segregação racial: era de policiamento. Pretos ou brancos, adolescentes “excluídos” ou imberbes “integrados”, os criminosos devem ser tratados como criminosos pela polícia. Não há volta a dar-lhe. O resto é cair na vitimização rota, muito sociológica e sacana, ou no racismo de pretos e de brancos, demasiado imbecil.
Há aqui uma questão central: a da nacionalidade. Eu quero que o meu país seja feito de pretos e de brancos, de católicos e de muçulmanos, de ucranianos e de beirões. É uma ideia pessoal e admito que seja lamentável – mas não vejo outra solução. Estamos todos cá. Já vai longe o tempo em que tivemos um treinador da selecção nacional de futebol que defendia a existência de “portugueses legítimos” e de “portugueses de segunda”. Para mim, Deco é como se tivesse nascido no Minho e um miúdo nascido de pais bielorrussos que trabalham em Lisboa é como se fosse ribatejano.
O presidente Sampaio foi à Cova da Moura. Devia ir mais vezes porque vivem lá portugueses e não pretos. E o presidente da Câmara da Amadora também. Se aquelas pessoas são portuguesas, são portuguesas – devem obedecer às nossas leis, ser tratados como cidadãos, presos se cometem crimes, hospitalizados se estão doentes, perseguidos se praticam excisão feminina, e os seus filhos educados nas escolas públicas. Essa é a lei que eu defendo. Se não são portugueses, devem comportar-se como estrangeiros e respeitar o país onde vivem até que decidam, de acordo com uma lei justa e generosa, optar pela nossa nacionalidade. E aos estrangeiros devemos também um pouco de atenção. Nós fomos estrangeiros em qualquer outro lugar da nossa vida.
Isto não evita os arrastões, mas ajudará bastante. O pior racismo é o da iniquidade com que se permite a miséria. A pretos ou a brancos.