Angola: reconstrução e reinserção
José Lello (Público de Segunda, 17 de Abril de 2006)
Angola precisa de tempo para fazer as suas reformas e ajustes económicos e sociais e para refrescar a sua normalidade democrática. Por isso, em muitas das opiniões que têm sido expressas, há boas doses de intolerância e de acinte. Angola não é a Noruega. Esteve em guerra durante trinta anos e só há quatro usufrui dos benefícios da paz
A visita do primeiro-ministro José Sócrates a Angola despertou um incontido e interessante torvelinho de emoções, posições e opiniões que se misturam, por vezes, de forma um pouco confusa. Por isso, nem sempre se consegue distinguir bem onde termina uma posição ou opinião e começa a emoção. Nalguns casos, é mesmo visível que quem assim opina tem uma dupla identidade e metade do coração em Portugal e a outra metade em Angola. No fundo, as afinidades entre portugueses e angolanos são tão profundas que uns e outros não resistem, emocionalmente, a meter a foice em seara alheia. Mas não é dessa forma que dois Estados soberanos e que se respeitam se devem relacionar.
Angola tem muitos problemas. Todos sabem isso, mesmo que o conhecimento que deles têm alguns comentadores se baseie apenas naquilo que lêem nos jornais, sem conhecerem, portanto, a realidade concreta angolana, sobretudo a mais recente, que se desenvolveu ao longo destes escassos quatro anos de paz. Mas o que muita imprensa e opinion makers mais gostam de focar são os problemas de corrupção, da falta de democracia e da violação dos direitos humanos. Estão de tal forma obcecados nesse registo que não se percebe bem se estão mesmo interessados em descodificar os contornos reais da actualidade angolana e se estarão verdadeiramente determinados em apoiar a reconstrução nacional, a reinserção social e a normalização política e cívica que a paz tornou possível. Provavelmente há quem esteja interessado em dar uma imagem negativa de Angola, apenas e só porque é o MPLA que está no poder. Essa é uma postura redutoramente partidária e, por isso, pouco isenta.
Essa é, assim, uma imagem distorcida e injusta de Angola, que precisa de tempo para fazer as suas reformas e ajustes económicos e sociais e para refrescar a sua normalidade democrática. Por isso, em muitas das opiniões que têm sido expressas, há boas doses de intolerância e de acinte. Angola não é a Noruega. Esteve em guerra durante trinta anos e só há quatro usufrui dos benefícios da paz. O país ainda vive o drama sem fim das sequelas da guerra, cujos custos se estimam em 20 biliões de dólares. Permanece o drama das vidas destruídas e desmembradas, das populações deslocadas, de uma administração que desapareceu em muitas regiões, onde as infra-estruturas ficaram completamente arrasadas e o Estado se quedou globalmente desestruturado. Angola não pode, nenhum país o consegue, sair de uma guerra tão dramática e deter desde logo padrões de democracia equivalentes aos modelos europeus mais avançados. Luanda, por causa dos deslocados, tem hoje quatro milhões de habitantes, muitos deles amontoados nos musseques, quando as estruturas da cidade não suportariam, porventura, mais de meio milhão de pessoas. É o caos de um lado e o deserto nas regiões abandonadas do outro. Em muitas dessas regiões não se pode plantar a terra nem desenvolver actividades económicas por causa dos milhões de minas que aí foram abandonadas. Só o esforço de desminar o país é algo de gigantesco em termos humanos e financeiros.
Angola precisa da ajuda de todos para se desenvolver. O resto, previsivelmente, virá por arrastamento. E, por razões de afinidade histórica e cultural, quer, sobretudo, a participação portuguesa nesse projecto grandioso. Se conseguir o desenvolvimento a que aspira, estarão criadas as condições para se erguerem as devidas estruturas económicas, sociais e democráticas, o que, convenhamos, nem sempre é fácil em África.
Se uma coisa me impressionou durante a minha recente deslocação a Luanda como secretário para as Relações Internacionais do PS para contactos com diversos altos dirigentes do MPLA, foi o facto de ter constatado um empenho sério e determinado da parte dos meus interlocutores em promover o desenvolvimento económico e social do país e em consolidar as suas instituições democráticas, envolvendo todos os angolanos no difícil processo de reconciliação nacional. Além disso, o país tem feito um grande esforço de estabilização económica e financeira e nisso tem obtido bons resultados. São tudo sinais de uma vontade de mudança que não podem ser ignorados.
Por outro lado, seria interessante que quem expende tão taxativas opiniões sobre a situação política angolana se interrogasse sobre a quem imputar responsabilidades pelo facto de o recente processo de reforma legislativa e constitucional que deveria conduzir a eleições não ter avançado em tempo útil. Dei-me conta de que, ao nível parlamentar, em Luanda se pretendeu gerar amplos consensos que credibilizassem o processo. Pareceu-me, além disso, que o Governo procura estabelecer um relacionamento aberto com o Parlamento angolano, onde existe um debate político interessante e onde presta contas aos partidos políticos que nele têm assento, situação quase nunca referida nas catilinárias militantes.
Outro dos aspectos que revelaram a parcialidade de quem jamais consegue distanciar-se de uma postura de interferência abusiva nas questões internas de Angola foi essa tentativa de reduzir a viagem do primeiro-ministro José Sócrates ao mero interesse económico. Até se poderia perguntar se haverá mal nisso. Sobretudo quando se esquece que o Governo português tem uma cooperação intensa em muitos outros domínios, de onde sobressaem a educação e a saúde, nos quais ali existem necessidades dramáticas. Isto já sem contar com o facto de o ensino também ter estado presente na deslocação do primeiro-ministro José Sócrates.
É preciso bom senso nesta floresta opinativa e, por vezes, nas cortinas de fumo que se pretendem lançar sobre Angola, que só prejudicam desnecessariamente a percepção e as relações entre os dois países. Se Portugal não faz juízos de valor em relação a outros países, porque simplesmente não tem de se intrometer nos assuntos internos de Estados soberanos, por que razão havia de o fazer em relação a Angola? Ambos os países só têm de se esforçar para manter um bom nível de relacionamento e resolver os problemas de percurso que possam surgir. Portugal e Angola evidenciam a vontade expressa dos seus para aprofundarem os seus laços de amizade e de cooperação, de forma franca e sem complexos nem parti-pris. Ajudando-se mutuamente, porque ambos os países têm muito a partilhar um com o outro. secretário para as Relações Internacionais do PS